Sérgio Camargo e a síndrome de Stephen

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As razões que levaram o governo Bolsonaro a nomear um negro racista para presidir a Fundação Cultural Palmares são muito evidentes e coerentes com o fato de elegerem a cultura como inimiga; assim como sua tentativa de reverter qualquer conquista dos descendentes daqueles que produziram a riqueza e construíram a civilização brasileira por mais de três séculos e meio. Nomeação essa que, de tão estapafúrdia, foi vetada pela Justiça e revogada pelo próprio governo. Todavia, para além da perplexidade que nos causam as declarações do jornalista Sérgio Camargo, há que se refletir acerca das razões e das condicionantes históricas, econômicas, políticas, sociológicas e psicológicas que levam ao surgimento de indivíduos com falas e comportamentos tão abomináveis. 

Por Ramatis Jacino, enviado para o  Portal Geledés 

Ramatis Jacino- Reprodução/facebook

Foi a ficção e não a vida real que lançou luzes sobre um tipo de personagem que parece inverossímil, todavia presente na nossa realidade que, para além do exemplo do novo ex presidente da FCP, ganhou notoriedade através de figuras execráveis como o vereador paulistano Fernando Holiday e o deputado federal pelo Rio de Janeiro, Hélio “Negão”. No filme Django Livre, dirigido por Quantin Tarantino, destaca-se o mordomo Stephen, interpretado por Samuel L. Jackson; notável pela fidelidade incondicional a um escravizador particularmente cruel, que se divertia em torturar seus cativos. Stephen se tornou, desde então, a síntese do negro traidor, subserviente, repulsivo a todos aqueles que defendem a dignidade humana. Contudo, tais figuras públicas comprovam mais uma vez o quanto a ficção e a realidade estão próximas. Para além do asco que nos causam essas personagens fictícias ou reais devemos procurar compreender o fenômeno, auxiliados por reflexões como as de Fanon e seus paradigmáticos estudos acerca do comportamento dos colonizados e escravizados. Os danos causados pelo racismo e a discriminação perene na nossa “democracia racial” podem ser mensurados a partir das dimensões que apontamos acima, compreendendo que estas não estão dissociadas; ao contrário, são complementares. 

Da mesma maneira que a dominação de classes, o racismo, invariavelmente, gera a revolta de suas vítimas que, por sua vez, se manifesta fundamentalmente de duas maneiras. A primeira é quando o objeto da discriminação/opressão resgata sua humanidade, toma consciência dos mecanismos que levam à sua subjugação e se articula com os iguais para enfrentá-la de maneira coletiva. Assim nascem os militantes que lutam por igualdade, fim da discriminação e reformas sociais e políticas; primeiro passo para o surgimento de revolucionários. A outra manifestação de revolta é a individual, que na essência é autodestrutiva, sem foco e parte da premissa de que a sociedade como um todo é sua inimiga. Essa compreensão limitada e obliterada da injustiça social faz o indivíduo eleger arbitrariamente como responsável pela opressão – portanto, objeto do seu ódio – qualquer outra pessoa ou instituição, em especial os mais próximos, por serem palpáveis. Assim nascem os sociopatas. 

Ao contrário do que conclui o senso comum, o sociopata não necessariamente torna-se delinqüente, ele pode exercer seu ódio cego nas mais diversas circunstâncias. Na atualidade, as redes sociais representam o veículo perfeito para elevar à condição de celebridades doentes mentais, ignorantes e medíocres, ressentidos com a cultura e brilhantismo de outrem, não por acaso, espaço onde o “staff” do governo federal o encontrou.  Sérgio Camargo é um sociopata, um Stephen da vida real. Um indivíduo profundamente adoecido, um “narciso às avessas”, como apontado de maneira brilhante pelo professor Juarez Xavier ao vaticinar que “O auto-ódio é o produto mais sofisticado do racismo. Desumaniza. Destrói a psique. Arrebenta os espaços de subjetividade. Ensina a odiar apaixonadamente o quê se é! E a amar odiosamente o que nunca será! Sérgio Camargo não é um homem negro. Não é capitão do mato. Não é pai João. É um racista! Supremacista branco! Encapsulado num corpo negro. Amaldiçoado e assombrado pela ancestralidade. Vive uma fabulação, que se dissolve diante dum espelho, todas as manhãs. De uma porta de banco. Uma batida policial. De um imbecil racista que o mira nos olhos e grita…….! Um narciso atormentado! 

A singularidade de Camargo está na maximização, na exuberância da sua degeneração, no tamanho que sua patologia alcançou e no fato de ter encontrado seu “lugar de fala” graças a ascensão do fascismo em nosso país e das bizarrices que o acompanham. A perplexidade que atinge a todo negro ou negra consciente se dá por ter esse indivíduo escancarado a “caixa de esgoto” que sua alma se tornou. 

Contudo, convivemos diariamente com milhares de embriões de Sthepen (ou da sua versão real); revolvendo-se no auto-ódio perene, nas assombrações da ancestralidade negada, buscando uma imagem branca num espelho inexistente. Camargo voltará para o ostracismo e a ruminação da sua doença no submundo da internet. Sthepen continuará presente, pois embora outros indivíduos – em estágio germinal –  talvez nunca atinjam o nível alcançado por ele, a sua soma alimenta uma montanha colossal de auto desprezo e recusa à tomada de consciência. Muitos homens e mulheres negras no Brasil sofrem da “síndrome de Stephen” e, ainda que não tenham atingido o nível de mau-caratismo do mordomo repulsivo da ficção e do jornalista da vida real, vivem uma espécie de borderline composto de pequenas e cotidianas auto negações e auto ódios.  A “síndrome de Stephen”, normalmente se manifesta na forma mais leve, mas lança sinais inequívocos da patologia social que representa. É possível percebê-la na mulher que odeia sua aparência e se auto mutila em busca de um cabelo liso; nos homens que buscam obcecadamente uma parceira branca para legitimar sua suposta, ou real, ascensão social; no desprezo à religiosidade ancestral e adoção da divindade branca, principal arma da dominação e etnocídio europeus. Está presente na colonização cultural e epistêmica que pensa ciência e filosofia unicamente a partir dos paradigmas eurocêntricos; na incorporação da ideologia capitalista, desconsiderando o papel da escravidão para a construção desse modo de produção e o quanto o racismo está a serviço da dominação de classes. Está presente na idéia da possibilidade de ascensão individual, em contraposição à coletiva, negação mais explícita da ancestral filosofia ubuntu, tão mencionada quanto deturpada na sua essência. 

Sérgio Camargo, assim como o Stephen da ficção, prestou um grande serviço aos negros e negras brasileiros ao nos mostrar o monstro que podemos nos tornar se não radicalizarmos no processo de descolonização e na busca de nossas raízes africanas, os mais eficazes medicamentos contra doença tão grave. 

 

 Frantz Omar Fanon (Martinica, 20/07/1925 – Maryland, 06/12/1961) Psiquiatra e pensador, que se notabilizou na França é autor de clássicos como Pele negra, máscaras brancas e Os condenados da terra.

 

* Ramatis Jacino, militante do movimento negro é doutor em História pela FFLCH/USP e professor da Universidade Federal do ABC


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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