Simulacro democrático

Líderes populistas fingem jogar dentro das quatro linhas da Constituição

FONTEPor Oscar Vilhena Vieira, da Folha de S. Paulo
Oscar Vilhena Vieira, professor e cientista político (Foto: Jardiel Carvalho /Folhapress)

Se a geração de meus professores se concentrou em responder quando termina o regime autoritário e se consolida a democracia, o desafio neste momento é, lamentavelmente, tentar compreender a partir de que ponto o regime democrático se converte em autoritário.

Essa pergunta se torna particularmente mais difícil quando as ameaças às instituições, aos direitos e aos valores republicanos ou liberais partem de líderes eleitos, que se apresentam como representantes exclusivos da soberania popular, como na mais recente vaga de populismo autocrático.

A questão não é nova. A degeneração da república romana e ascensão do despotismo imperial, como nos ensinou Montesquieu, foi marcada pelo emprego sistemático e abusivo de prerrogativas constitucionais e da legalidade, que terminou por subverter as próprias virtudes do governo das leis e da separação de poderes.

Embora as instituições políticas brasileiras venham sendo submetidas a um teste extremo de resiliência, que culminou com a eleição de Bolsonaro, é difícil negar que nas últimas semanas a pressão sobre as instituições democráticas tenha aumentado.

De um lado, temos recebido sinais animadores de que o sistema de separação de poderes vem reagindo de forma clara na contenção de arroubos autoritários e obscurantistas do Poder Executivo. Destaque fica com o Supremo Tribunal Federal, que tem empregado o seu capital político na defesa do bloco constitucional, sob intenso e cotidiano ataque do bolsonarismo.

Também o Senado Federal parece ter assumido um papel cada vez mais proeminente na contenção de rompantes inconstitucionais, especialmente após a instalação da CPI da pandemia.

Mas, por outro lado, há um crescente processo de captura de diversas instituições, com potencial de gerar forte regressão democrática. A constrangedora capitulação do comando do Exército face ao desejo presidencial de ter um exército para chamar de seu abriu as portas para um engajamento ainda maior das classes armadas no jogo político brasileiro. O emprego abusivo da força por policiais militares, em diversas partes do país, contra opositores do presidente dá a dimensão da crise contratada pelo comando do Exército.

Concomitantemente, pode-se observar o emprego cada vez mais corriqueiro da lei, inclusive da LSN (Lei de Segurança Nacional), como medida voltada a constranger os críticos ao governo. Do guarda da esquina às mais altas hostes jurídicas, todos se sentem autorizados a censurar e intimidar seus críticos e opositores.

A Câmara do Deputados, por sua vez, alterou seu regimento interno, restringindo a participação das minorias no processo de deliberação parlamentar, o que coloca em risco, sobretudo, o direito de minorias vulneráveis, assim como a proteção do meio ambiente. Nesse novo contexto, começou a tramitar o nocivo projeto de emenda constitucional que determina o voto impresso. Se aprovado, terá um forte potencial de desestabilizar o pleito eleitoral de 2022. Basta imaginar a ação das milícias governistas na fiscalização da lealdade do eleitor. Isso sem falar num devastador processo de judicialização, voltado a desacreditar o pleito.

Como outros processos de regressão autoritária têm demonstrado, líderes populistas são especialistas em se apropriar dos símbolos e valores democráticos, reiterando o compromisso de “jogar dentro das quatro linhas da Constituição”, de “defender a liberdade” e a “vontade soberana do povo”, num verdadeiro simulacro contra a Constituição e os direitos fundamentais que juram proteger.

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