Síndrome da princesa da mulher branca: Rapunzel, Cinderela e Branca de Neve

FONTEPor Fabiane Albuquerque, enviado ao Portal Geledés
(Foto: Adobe /Stock)

O título deste texto foi sugerido por Suzane Costa, mulher negra que me disse o seguinte: “Fabiane, você poderia falar da “Síndrome da Princesa” em mulheres brancas? Eu trabalho com uma e não a suporto mais. Ela trata-me, e se comporta, como se estivesse no seu reino. E, se não obtém o que quer, faz de tudo para que os outros se sintam culpados.”

Bem, este exemplo poderia ser um traço da personalidade de qualquer pessoa. Mas, como não é novo o relato acima, pelo contrário, é recorrente nas nossas relações com mulheres brancas, resolvi tecer algumas reflexões acerca do assunto. 

A Síndrome da Princesa, geralmente, acomete mulheres brancas, principalmente das classes médias e altas que, desde pequenas, por causa do fenótipo (raça), recebem demasiada atenção, bajulação, paparicação, aprovação, elogios e confirmação. Ao crescerem e se tornarem adultas, elas, que sentem ser o gênero legítimo, ter a pele certa, o cabelo padrão e  os traços que jamais as expõem à hostilidade, comportam-se como se o mundo fosse o seu reinado e, os súditos, pessoas racializadas que devem atender às suas necessidades e demandas ou, simplesmente, existir para os seus desejos. Ela só abaixa a cabeça para o homem branco, também privilegiado. Com mulheres pretas, elas são extremamente agressivas, um tipo de agressividade que sai de forma sutil e mascarada, afinal, princesas são delicadas e meigas e não podem demonstrar a raiva abertamente. 

Nos arquétipos disponíveis no mundo colonizado e globalizado, as princesas brancas e ocidentais podem fornecer alguns elementos, como traços da personalidade de mulheres brancas brasileiras, construidos na socialização marcadamente racista, classista e machista. São elas: a Rapunzel, A Cinderela e a Branca de Neve. 

A Rapunzel é aquela menina branca, criada com toda a proteção da família e da sociedade, pois o seu fenótipo evoca inocência e cuidado. Ela é tratada como um bibelô e, de pessoas racializadas, solicita cuidado e proteção.  A Rapunzel está presa na sua torre simbólica e, nas relações sociais, se comporta como se todos devessem libertá-la da sua “prisão”. Ela é aquela que exige tudo, que tudo espera e nada faz em troca: “Ninguém me ligou para saber como estou”, “Ninguém pergunta a minha opinião”, “Ninguém me leva para passear”. É sempre o outro quem lhe deve algo e, quando encontra uma mulher negra, vista como a sua empregada, tende a sugar dela até a alma. São aquelas mulheres que não vivem sem uma doméstica, para quem desabafa os problemas e a tem como conselheira, amparo emocional, seja nas tarefas do dia a dia que como “paparicadeira”.  A Rapunzel é o exemplo perfeito da mulher branca infantilizada. Sobre isso, com a pesquisadora Vanessa Diniz, do departamento de psicologia da Universidade Federal Fluminense, escrevi um artigo intitulado “A infantilização de mulheres brancas: dispositivo de raça, gênero e classe na construção de subjetividades”, disponível na Revista Teoria e Cultura da Universidade Federal de Juiz de Fora. 

Rapunzel não sai da sua torre e jamais dá um passo para um encontro recíproco e maduro nas relações. Conviver com “rapunzeis” é extremamente cansativo. Elas nunca estão satisfeitas, sempre apontam o que alguém deixou de fazer para torná-las felizes. Ela é aquela amiga de infância, da mesma idade, que ao passar na sua casa, a mãe diz: “Cuida dela para mim”, só porque ela é branca, e você, negra.

Cinderela é a mulher branca pobre que sabe da passabilidade para entrar no baile da burguesia e da branquitude, apesar da sua classe social. A sua brancura garante-lhe passagens em diversos espaços e ela utiliza disso para obter vantagens. Vejam bem, ela, apesar de materialmente desprivilegiada, tem capital afetivo e social na sociedade por causa do seu fenótipo. A fada madrinha, expressão destes capitais, que transforma a abóbora em carruagem, não aparece na vida de mulheres negras. Jamais ganhamos gratuitamente o vestido, os sapatos de cristal, o transporte para a festa e, ainda, a garantia de que alguém estará lá, num horário determinado, para nos levar para casa, sãs e salvas. Com alguns adereços, como a tinta de cabelo da farmácia para torná-la ainda mais branca, a chapinha, a academia e as plásticas, a Cinderela consegue abrir muitas portas, inclusive ser escolhida pelo príncipe que, certamente, se estivesse vestida como uma das serviçais, nem a teria notado. Ele notou a sua aparência na vestimenta elegante, no entanto, se passa por um homem desconstruído e sem preconceito, que até se casa com alguém de uma classe inferior. Mas dele a gente fala outra hora. 

Mulheres negras, mesmo com vestido elegante, se entrar na festa, é constrangida pelos olhares o tempo todo, a não ser que faça o jogo da branquitude, como demonstrar gratidão o tempo todo, sorrir como se tivesse recebido um favor por entrar e, ainda, negar o racismo dizendo que isso está na cabeça de cada um. Afinal, se ela entrou, todos podem, não é? Encontramos muitas “cinderelas” nas salas de aulas, nas secretarias das instituições, esperando a oportunidade certa para ir ao baile.  Elas nos perseguem nas lojas de departamentos, nos destratam em serviços públicos, em bancos privados, mas não perdem a ocasião de nos usar como ombro e ouvido para escutar as suas dores com a “madrasta” e as suas “meias irmãs”. A “cinderela” é aquela amiga de infância, da mesma idade, que sempre ganhava o concurso da menina mais bonita da sala, da Rainha da Pipoca e todos os meninos queriam ser o par na festa junina.

A Branca de Neve é a mulher cercada por homens, representados na figura dos sete anões. É o símbolo do patriarcado que a protege, pois, afinal, elas são adoráveis, lindas, meigas, delicadas e sorriem sempre. Atrás dela, tem outra mulher, que ela demoniza e que, na sua cabeça, a inveja: a Bruxa Malvada. A Branca de Neve tem obsessão por esta figura e, enquanto faz média com os homens, a sua principal inimiga é outra mulher que, na vida real, é racializada. Na sua cabeça, a “bruxa” quer destruí-la porque não suporta a sua brancura, os seus cabelos lisos, a sua juventude e o seu charme junto aos homens. Ela imagina que a sua “outra” passa o dia se perguntando: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?” E a sua imagem cresce no espelho e se impõe na frente da mulher que ela acusa de invejá-la.

Ela não perde tempo para mobilizar o patriarcado contra esta “outra”. Eu tinha uma amiga branca que, todas as vezes que ela discordava de mim, evocava o marido, também branco, para legitimar o seu argumento: “Mas o fulano também pensa igual” ou, ao invés de dizer diretamente o que pensava, já começava com o que o marido tinha dito sobre o assunto. O marido era o garantidor da sua opinião em tudo. Como mulher, ela se sentia insegura em argumentar comigo, por isso pensava que a figura do seu homem lhe daria legitimidade e apoio. E os varões, geralmente, ficam do lado das Brancas de Neves contra mulheres negras, pois para eles, elas são o gênero legítimo, já nós, uma aberração. 

Pois é, A Branca de Neve mobiliza a sua “turma” contra outras mulheres negras sempre que lhes convém. Ela encanta os setes anões, fazendo-os até mesmo disputarem-na, para a sua glória e satisfação. Elas são extremamente sedutoras e encarnam também a representação da ninfeta, o que lhes garante abertura em muitos espaços de poder masculino.  

Como as princesas jamais podem demonstrar raiva, pois não é um afeto aceito em mulheres, elas reprimem a sua. Acontece que, sendo um afeto que todo ser humano sente, legítimo e até saudável, as princesas da vida real expurgam a sua em mulheres e homens negros, pois nos veem como o recipiente ideal para as mazelas que elas retêm nas relações com homens e mulheres brancas. Um traço muito comum em todas elas, e já escrevi um texto sobre isso intitulado “A passividade agressiva de mulheres brancas no lançamento do meu livro”, é a prática de nos “cutucar” o tempo todo, de forma sutil e “cordial” para, quando reagimos, confirmarem a nossa agressividade diante da elevada capacidade delas de não sentir raiva. 

Elas são também as mulheres “místicas” de hoje, que dizem ter alcançado um nível alto de elevação espiritual. Claro, elas nem sequer olham para o lado quando saem do shopping, da academia e do condomínio para lidar com os problemas de classe e de raça neste país tão segregado e perverso para com pessoas diferentes do fenótipo delas. Estão presas nos castelos simbólicos onde a sociedade as colocou e elas, comodamente se adaptaram.

No Brasil, raça determina muita coisa, desde o tempo dedicado à interação, como demonstrou o professor e pesquisador Cícero Roberto Pereira, ao dizer que brancos dedicam mais tempo às pessoas brancas, até a distribuição de afetos, como mostrou a socióloga afro-americana Elizabeth Hordge-Freeman na sua pesquisa com famílias negras e multirraciais na Bahia. Quando ligados ao gênero e à classe, o valor de um corpo branco aumenta para a sociedade, virando capital social. O Capital Social, conceito de Pierre Bourdieu é aquilo que uma pessoa pode usar para tirar vantagens na sociedade, pois o valor de algo, é dado pelo que a maioria considera importante. Por isso, raça, classe e gênero formam subjetividades que são, na maioria das vezes, apreendidas nas diversas ofertas simbólicas que temos, dependendo de qual corpo combina. Estas ofertas não são para qualquer um. Mulheres que têm o fenótipo da princesa, na sociedade brasileira, podem encarnar o papel, já  mulheres negras, adultizadas e sexualizadas desde criança, são vistas como o contrário: as servas e cuidadoras das princesas. Temos mulheres brancas que adotam alguns comportamentos padrões da cultura de massa globalizada e é a cultura brasileira, a saber, estruturalmente racista, que fornece elementos para serem usados por elas, em base ao tipo de corpo e aos estímulos que recebem desde crianças. O papel de princesa pode ser opressor, pois aprisiona mulheres em certos estereótipos, mas é, ao mesmo tempo, usado para oprimir mulheres e homens negros. 


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia e autora do livro Cartas a um homem negro que amei, Editora Malê.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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