A construção da Linha 6-Laranja do Metrô de São Paulo esbarrou em vestígios do Quilombo da Saracura, que existiu na região até o começo do século 20 e que hoje abriga o Bairro do Bixiga, na região central. O achado de artefatos que pertenciam a uma população quilombola que ali viveu ocorreu na construção da futura Estação 14 Bis, que vai ocupar o local da antiga sede da escola de samba Vai Vai.
O Sítio Arqueológico Histórico Saracura/14 Bis está localizado entre as ruas Dr. Lourenço Granato e Manoel Dutra. No local, encontram-se vestígios materiais associados à ocupações do início do século 20 como garrafas e louças, entre outros. Neste trecho passa também o Córrego da Saracura, que deságua no Rio Anhangabaú.
Para a construção do metrô, o consórcio é obrigado a realizar estudos de impacto ambiental, por meio do licenciamento ambiental. Em março de 2021, a empresa de arqueologia A Lasca, contratada pelo Consórcio, realizou um “monitoramento arqueológico e identificou vestígios arqueológicos no local. O documento intitulado “Projeto de Resgate Arqueológico Sítio Saracura/14 bis” foi enviado ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para a realização de novas escavações arqueológicas. Como a obra segue o licenciamento ambiental não poderia ser interrompida, de acordo com informações técnicas. O Metrô de SP foi questionado sobre os vestígios e qual será o processo e pediu para os questionamentos serem encaminhados para a Acciona, que é responsável pela construção da Linha 6-Laranja. O grupo que é espanhol preferiu questionar se a reportagem pediu posicionamento sobre o caso ao Iphan ao invés de responder sobre como se dará a continuidade da obra.
- O que está sendo debatido
Do início do século 19 até os anos 1970, a população da Saracura era predominantemente de origem africana. “Não tem como negar isso, logo, aquele material é dos quilombolas. Não há registro de italianos, espanhóis ou qualquer outro grupo imigrante vivendo na Saracura. A Saracura sempre foi uma comunidade negra, então, como arqueólogo, garantiria que aquele material é quilombola”, diz o mestre e especialista em arqueologia Alessandro Luís Lopes de Lima.
Tornar dúbia a origem dos artefatos achados, é segundo o especialista, uma forma de apagamento da história de uma população. Os movimentos negros estão pressionando para que haja estudos na região. Nesta segunda (13) haverá reunião para debater o tema. Uma das sugestões é que seja realizado um programa de Arqueologia colaborativa, onde o trabalho de pesquisa é construído coletivamente junto à comunidade envolvida, onde questões e perguntas de investigação, são levantadas junto com o interesse da comunidade. “Gostaríamos de pensar na construção de um memorial, tal como na Capela dos Aflitos, na Liberdade ou do Cais do Valongo, no Rio. Será possível deixar esse sítio arqueológico à vista, protegidos por acrílico transparente e servindo como atração turística?”, questiona Alessandro.
Os movimentos defendem ainda que a proteção e o resgate de um sítio arqueológico é também uma forma de levantar novas informações sobre estes antigos quilombolas, que não estão nos textos oficiais e nem nos livros. Entre outras questões, há ainda a proposta de mudança do nome da estação, de 14 bis, para Saracura, como forma de reparação histórica para essas populações.
Obra na região da Praça 14 Bis da Linha 6-LaranjaA Linha 6-Laranja do Metrô vai interligar o metrô São Joaquim, da Linha Azul, até o bairro da Brasilândia, na região noroeste da cidade, tem 15,3 quilômetros de extensão, com 15 estações previstas, entre elas a da Angélica, que causou polêmica por não ter a anuência de parte dos moradores de Higienópolis e a 14 Bis, que desabrigou a escola de Samba Vai Vai.
História
A região abrigou no século 19, um dos primeiros quilombos da cidade de São Paulo, o Quilombo da Saracura, sendo o local também denominado como “Quadrilátero Negro ou da Saracura”, que inicialmente serviu como local de descanso na rota de fuga de pessoas negras escravizadas e que hoje ainda possuí em sua paisagem indicativos da forte presença da cultura afrodescendente, como a escola de samba Vai-Vai.
Ainda segundo a empresa A Lasca Arqueologia, “já em 1791 era grande o trânsito de tropas e carros de boi que atravessavam a cidade. Estes traziam mantimentos vindos de Atibaia, de Parnaíba e faziam parada na chácara do Bexiga, entre o Anhangabaú e o riacho Saracura. Nesta região, em 1814, foi aberta a Estrada do Piques que ia rumo a Sorocaba, atualmente Rua da Consolação”.
A escola de samba Vai-Vai, uma das mais tradicionais de São Paulo, foi fundada em 1930, surgida como um cordão carnavalesco ligado a um time de futebol chamado “CaiCai” existente desde 1920. O time de futebol sobreviveu até 1940, enquanto a Vai-Vai continuou, tornando-se, na década de 1970, junto com muitos outros cordões existentes, uma escola de samba. Suas atividades tiveram início na Rua Rocha e depois de algumas mudanças chegou a a Rua São Vicente, 276.
A região da Saracura era conhecida no início do século 20, como a “Pequena África”, com habitações dispostas em linha nas margens do riacho, animais soltos, crianças brincando nas ruas e idosos com seus cachimbos. Também ali teria sido um dos berços paulistanos do samba de bumbo e do batuque, tendo a Vai-Vai nascido nessa trajetória que vai do samba de roda aos cordões carnavalescos. A cartografia oficial da cidade, no entanto, por muito tempo invisibilizou lugares informais e de resistência, representando a área, no final do século 19, como desprovida de ocupação humana e dando destaque apenas para a vegetação local, a exemplo da mata do Caanguçu (usada abundantemente pelos moradores do quilombo) e o Tanque do Reúno, represa que abastecia as fontes do Largo do Piques e da Luz até meados de 1876.
O Saracura é um marco paisagístico, cultural e temporal no bairro do Bixiga, atrelado à história da população local. Já dizia o samba de Geraldo Filme, Tradição de 1980: “O samba não levanta mais poeira, o asfalto hoje cobriu nosso chão. Lembrança eu tenho da Saracura, saudade tenho do nosso cordão”.
A luta dos movimentos sociais agora é para que não ocorra o mesmo que na década de 1970, quando foram encontradas ossadas do Cemitério dos Aflitos na Liberdade, mas o “o progresso” passou por cima da memória do povo negro na região. A expectativa é em 2022 a história seja outra.