Sobre cotas e preconceito: carta aberta ao diretor do Colégio Bandeirantes

Prezado Mauro Aguiar,

Espero que esteja bem, apesar do cenário de destruição e desesperança que se abate sobre este país.

Escrevo em meio a reflexões sobre o papel das escolas privadas na promoção de uma educação antirracista. Lendo a entrevista concedida recentemente pelo senhor à revista “Veja”, fica evidente o quanto ainda temos que avançar neste sentido.

Tomo a liberdade de fazer alguns apontamentos a respeito de suas declarações. Ao falar da política de cotas, o senhor usou os seguintes termos: “A sociedade já tomou 50% das vagas nas universidades públicas para alunos de escola pública. Está destruindo a universidade e disfarçando o problema”.

Cabem aqui algumas ponderações. Talvez o senhor não dê a devida importância, mas as cotas são medidas reparatórias que visam corrigir injustiças históricas, responsáveis por impedir, sobretudo, a população negra de exercer o direito humano de ingressar e permanecer nas universidades, que ao contrário do que muita gente pensa, não pertencem somente aos extratos mais privilegiados da sociedade.

Sua experiência como integrante do escritório da Universidade de Harvard, em São Paulo, certamente lhe permite saber que a política de ação afirmativa é adotada nos Estados Unidos há décadas, como também no Canadá, na Nova Zelândia e em vários outros países.

Além disso, mesmo a contragosto dos setores mais conservadores da sociedade, em 2012, por unanimidade (12 x 0), o Supremo Tribunal Federal deu parecer favorável à reserva de vagas para o ingresso em universidades federais, o que já acontecia na UnB, UNEB e UERJ.

Com a promulgação da Lei de Cotas (n. 12.711/12), resultante das lutas do Movimento Negro, demos um passo importante em direção à democratização do ensino superior no Brasil. Ainda que tardiamente, a medida foi adotada pela USP e pela Unicamp em 2017. Portanto, o uso do verbo “tomar” é um tanto quanto equivocado para nomear o ingresso de pretos e pobres em instituições que até pouco tempo funcionavam como verdadeiras capitanias hereditárias das classes mais abastadas.

É importante ressaltar que “tomar” é um costume bastante comum entre os brancos que estão no poder há mais de quatro séculos. São os brancos que tomaram e ainda tomam as terras dos indígenas. Foram os brancos que tomaram o direito dos negros de constituir família, escolher o próprio nome e ter a humanidade reconhecida ao escravizá-los. São os brancos que ao elaborar políticas públicas e estar à frente das grandes corporações tomam as possibilidades da maioria da população de viver com dignidade e ter acesso à educação de qualidade, à cultura, à saúde, ao trabalho e ao lazer.

Ainda sobre a entrevista, o senhor disse que o ingresso de estudantes cotistas, oriundos da escola pública, “está destruindo a universidade”. Permita-me lhe fazer uma pergunta: baseado em que o senhor fez essa afirmação? Uma série de pesquisas afirma justamente o contrário.

Um levantamento feito pela UFMG em 2018 revelou que o desempenho dos alunos cotistas é igual ou superior ao dos demais graduandos em 95% dos cursos. Estudo semelhante realizado em 2016 por pesquisadores da UFBA, apontou que estudantes que ingressaram pelo mecanismo de reserva de vagas apresentavam notas superiores aos dos não cotistas. Mesmo sabendo que o senhor anda extremamente ocupado com as demandas do Colégio Bandeirantes, sugiro a leitura de pesquisas como as que apontei, de modo a desconstruir a ideia equivocada de que aqueles que não estudaram em escolas como a que o senhor é diretor destroem a universidade.

Por outro lado, entendo seu incômodo em relação a esse novo público que cada vez mais se faz presente nos estabelecimentos de ensino superior. Vivemos em um país que se acostumou a ver negros e pobres em condição de subalternidade. Enquanto redijo essa carta, penso na pergunta feita pelo antropólogo congolês Kabengele Munanga, que por alguns anos foi único professor negro da FFLCH/USP: “Quem vai limpar a casa-grande se agora os negros estão na universidade?”.

De repente, indivíduos que permaneceram por tanto tempo na invisibilidade começaram a ingressar em cursos de graduação e pós-graduação na condição de docentes, discentes e pesquisadores, o que é motivo de revolta para muitos. Jaqueline Goes de Jesus, biomédica, mulher negra, nordestina, é exemplo dessa nova era. Pós-doutoranda no Instituto de Medicina Tropical da USP, além de filha das políticas públicas de expansão do ensino superior no Brasil, Jaqueline liderou o sequenciamento do genoma do novo coronavírus no país.

Tudo isso movimenta as estruturas da nossa sociedade, construídas sob os signos do racismo e da escravidão. Pensando nisso, mais uma vez me vieram a mente as palavras do professor Kabengele Munanga: “Qualquer proposta de mudança em benefício dos excluídos jamais receberá um apoio unânime, sobretudo quando se trata de um país racista”.

Por fim, lembro que as cotas não objetivam ser uma política permanente. Vivo na esperança de que um dia todos e todas tenham acesso a uma educação de excelência. Vivo na esperança de que um dia cada cidadão desse país desfrute da igualdade de oportunidades e poder de escolha. Enquanto isso não acontece, as cotas serão necessárias, ainda que aqueles que sempre se beneficiaram das desigualdades que marcam o Brasil não compreendam o valor delas para a construção de uma sociedade justa e democrática.

Despeço-me com um abraço.

Luana Tolentino, ex-empregada doméstica, cotista, aprovada no doutorado em Educação da UFMG, eleita a melhor universidade federal do Brasil.

Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. Atualmente tem se dedicado à Formação Inicial e Continuada de Professores. É autora do livro Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula, lançado em 2018 pela Mazza Edições.

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