Este texto nasceu de uma série de conexões. Estava escrevendo sobre racismo para uma revista. Aí meio que por mágica (isso acontece muito comigo), veio a música Age of Aquarius/Let the sunshine in na mente.
Por Tulio Custódio Do Brasil Post
Quando isso acontece, abro Youtube e busco a música, no que encontrei dois vídeos (um do musical Hair, outro com imagem do grupo – 5th Dimension). Aí me veio na cabeça: “nossa o grupo é inteiro de negros, e a imagem/ representação do negro está tão desassociada dos hippies ou do movimento contra cultura”. Na verdade, desassociada da paz…
Entre vários exemplos ilustrativos, para ficar na esfera das representações no entretenimento, tenho também na memória o filme Forrest Gump, em específico aquela cena que Forrest vê sua amiga apanhando de um líder estudantil (branco) próximo aos Panteras Negras. Uma cena pequena no filme, que faz um retrato romanceado e caricato do período. Um cena pequena… Vários significados e marcadores de representação…
Por que a memória sobre negros está atrelada, de uma maneira pejorativa, à agressividade quando se trata de momentos de seu protagonismo?
Bom, para isso teria que voltar na reconstrução de memória sobre questão racial e luta pelos direitos civis puxada pela memória afro-americana, e , sem dúvida, com ajuda da indústria do entretenimento.
Nesse sentido, o que entra em jogo são os anos 1960 e líderes como Dr. Martin Luther King e Malcolm X. Boa parte da memória que se constitui desse momento, além da luta e das conquistas, é a de um falso Fla-Flu entre o que seria uma percepção conciliadora de ativismo (representada pelo Dr. King) e uma percepção conflituosa e até beligerante de ativismo (representada por Malcolm X e pelos Panteras Negras).
Ignorância à parte – afinal, em especial nós brasileiros, não somos obrigado a saber detalhes dessa história –, podemos dizer existiriam apenas duas formas de percepção de formas de protagonismo ou voz levantada na sociedade:
(1) a conciliadora, que tem paciência, é integradora, pacífica, e quer resolver o problema de discriminação integrando (e negociando constantemente com) o opressor nas linhas de batalha para solução do problema;
(2) a radical, mais agressiva, que não demanda participação do opressor para superação do problema de racismo e frequentemente faz acusações diretas e não negocia.
Bom, independentemente das duas posições, há muita aparência, e pouca realidade. Qual é o fato? Nenhuma das duas vias se concretiza efetivamente!
O discurso conciliador sofre constantemente por ter boa parte de seu valor de luta e reflexão descaracterizados (quantas vezes não vemos frases de Dr. King citadas ao léu, sem pé nem contexto, sendo usadas – erroneamente – para representar outras coisas que não a questão racial?).
Veja, o problema não é a apropriação, mas a negação da origem sobre a qual aquele discurso foi criado e aplicado.
Outro problema que enfrenta é a tentativa constante de protagonismo do opressor. Sim, quem está na posição de privilégio, mas se sente sensibilizado com a mensagem do conciliador, tem boas intenções sobre a pauta mas frequentemente tenta ser o porta-voz da questão… Não é por aí.
O discurso conciliador é apenas um caminho político para tratar e apresentar as questões que são apenas e tão somente protagonizadas por quem está lutando diretamente contra determinada forma de opressão.
No caso da questão racial, brancos são aliados. Não protagonistas. Mesmo diante de agentes conciliadores (que te explicam porque X coisa é racismo, porque Y é errado),o protagonismo é dos negros.
Conciliar, apontar as questões é uma estratégia política para luta pela igualdade racial e não passar o pano para pessoas progressistas.
É importante entender que não existe Fla-Flu quando se trata do combate ao racismo: ambos, Luther King e Malcom X, foram líderes de caminho que convergiriam na mesma finalidade — inserção e dignidade plena dos negros e negras.
O outro lado da moeda da conciliação – e não é por esse lado que penso na questão da representação – são as figuras “pacíficas” mas não empoderadas, ou seja, figuras de servidão, de subserviência.
Figuras como Uncle Tom, Tia Anastácia, entre outros, que configuram uma imagem – vinda da escravidão – do negro submisso, subserviente, que está ali para servir e ajudar. Mas ele não existe como indivíduo, como subjetividade empoderada pois sua função e lugar no mundo é de ajudar o outro (branco) e não existir por si mesmo.
Essas figuras, parte de um passado histórico do lugar indigno e objetificado do negro na sociedade, reproduzem o lugar de opressão e desprivilégio. Não são figuras de luta para transformação e inclusão do negro.
Portanto, mesmo com “boas intenções”, não podem nem devem ser usadas em uma discussão sobre igualdade racial e combate ao racismo. Essas figuras são manifestação de um regime social e cultural com que os negros não se identificam. Que não os vê como indivíduos. Ponto.
Problemas também são frequentemente apontados pela “via radical”, onde está a problemática dessa reflexão.
Radicais são acusados de “negativos” que só veem problema (ou às vezes são, como a “vergonha alheia da opressão” não tem limite, acusados de causadores do problema), que não conseguem dialogar, não são “civilizados”, são perpetuadores do ódio e até, pasmem, atuam na lógica do racismo reverso. Sim, dizem isso: “vocês falam sobre ódio, mas são vocês que criam o ódio”, “o racismo está na cabeça de quem vê”…
O ponto é: em termos de representação, o protagonismo negro é sempre visto de forma agressiva e nervosa. O que significa, na lente de quem não é negro (ou, na lente do privilégio) que essa forma de agir e ser é ruim, é colocada de forma negativa, em oposição a uma noção de paz e tranquilidade que é manifestada nos dias atuais pela representação de indivíduo.
Veja, a cultura hippie é associadada à quebra da cultura dos valores de sexo, família, arte, música, juventude. E o protesto negro? Panteras Negras são constantemente representados como “pessoas nervosas” que só sabem agir com violência e beligerância.
A cultura da agressividade só se torna ruim porque ela é na verdade implicitamente comparada com a cultura da paz. Mas, convenhamos, quem pode ter paz sendo subjugado a todo momento? Quem pode ter paz sendo constante alvo de violência social, política, cultural e econômica?
Existe uma falsa assimetria nessa comparação simbólica, que faz o protagonismo negro (em seu protesto e, ao levantar voz contra injustiças por que passa, seja questionado e mesmo acusado de racismo reverso) sofrer em suas representações com a imagem de agressividade.
E para utilizar um outro ponto, demonstrando o valor pejorativo, poderíamos pensar “ah mas agressividade é bom! Significa luta”. Sim e não.
A agressividade não é positivada nas representações, assim como é quando se fala da agressividade de mercado (mercado financeiro, por exemplo). É algo ruim, é como se fosse o lado menos valorizado da agressividade. E está com os negros.
É ruim ainda que essa pecha da agressividade geralmente seja imposta de fora: isto é, pessoas que não são (ou não possuem a perspectiva) do protagonismo da luta contra o racismo e que colocam a tag “ah mas esses são radicais, eles São agressivos, ASSIM NÃO PODE“, não percebendo o valor reprodutor de desigualdades de privilégios e o quanto, isso sim, é agressivo de ser ouvido.
Quando alguém que não é parte de um movimento resolve se colocar e “dar sua opinião”” tem que saber que, sim, pode ouvir e ser contrariado simplesmente por isso. Porque aquele não é o lugar de protagonismo da pessoa. Ponto.
O homem não tem lugar de protagonismo na luta das mulheres, assim como brancos não têm lugar de protagonismo no combate antirracista. Podem ser aliados, e, como a lição de casa mais importante, podem lutar entre si para desconstrução de seus privilégios.
Acho sempre engraçado (tragicômico) como se processa SEMPRE: privilegiado vai e dá pitaco em uma pauta do desprivilegiado; desprivilegiado aponta que aquele não é espaço para aquele tipo de pitaco, pois não é espaço de protagonismo dele; privilegiado se sente ofendido e diz que desprivilegiado é ignorante, não sabe dialogar e é agressivo”…
E assim caminha a humanidade: desigual, sem liberdade e não fraterna.
É importante que as pessoas em situação de privilégio parem de reproduzir esses valores e tags sobre o comportamento de quem está levantando sua voz do lado dos desprivilegiados.
Um branco não pode acusar um negro de agressivo porque esse mesmo não aguenta mais sofrer violência da polícia. Assim como um homem não pode chamar uma mulher de agressiva porque ela não quer saber a opinião dele sobre a violência que ela sofre nas ruas todos os dias. Não!
E é nesse sentido que a constante imagem e representação da agressividade dos negros – para focar no ponto que estava tratando (e, claro, no meu lugar de fala) – incomoda tanto.
Pelo fato de ser externamente imposta, pelo fato de ser um “desdignificante” do valor da fala e da pauta dele (novamente valorado externamente).
É preciso entender que essas representações não exaltam poder – porque, invariavelmente, elas acabam sendo absorvidas e reproduzidas no meio negro, em especial com o homem negro – nem nos dá espaço como sujeitos de nosso próprio destino. Não. Porque essa ideia de agressividade é construída em oposição ao ideal de “paz” e, em última instância, “civilidade” (eurocêntrica, claro) que está atribuída ao outro (no caso brancos, homens). Não.
É claro que não se trata de reclamar a mesma visão ou representação como do movimento contracultural dos hippies, mas também não podemos acriticamente achar ok representações de negros e negras como agressivos, radicais, fora de qualquer universo de entendimento, negociação e troca.
E muitas vezes esse discurso vem das mesmas pessoas que advogam pertencer à cultura (para elas) da paz e amor. Filhos e filhas da Era de Aquário…
Aliás, para voltar ao tópico do começo, falar da Era de Aquário representaria grande momento de fraternidade universal, baseado na razão e evolucão intelectual e espiritual, grosso modo falando.
Pois bem, no discurso da igualdade e liberdade, também próprios do que a contracultura trouxe, está faltando fraternidade com as representações do negro.
Nesse ideal de beleza que seriam as transformações sociais, culturais e políticas que representam o século XX a partir dos anos 1960, continuam a representar paz com brancos e representar guerra com negros. Nada menos belo.
Não é agressividade que queremos que seja nossa cara. A violência da representação de nós como agressivos é reflexo de uma violência maior e mais profunda que sofremos, todas as minorias (ou maiorias: mulheres e negros por exemplo, que são mais de 50% da população brasileira).
Aliás, estamos cansados da violência. Não é por menos que faixas tão básicas como “Vidas negras importam” tenham que ser hasteadas em pleno 2015.
No fundo, como a Era de Aquário sugeriu, nós só queremos mais respeito sobre nossa imagem, representação e memória. Só queremos ter acesso a uma janela para deixar o sol entrar.