Sobre o ódio

Na democracia, pertencemos a uma comunidade política onde todos podem ser deslocados de suas posições e interesses por meio do debate e/ou de acordos.
por Marcos Rolim
O debate político, quando feito com respeito e profundidade, possui extraordinário poder. Os melhores argumentos exercem coerção virtuosa e criam caminhos. Ainda quando isso não ocorre, a democracia permite pactos em torno de soluções intermediárias, ainda que provisórias. No acordo, os debatedores mantém suas posições, mas cedem em parte de suas pretensões, superando impasses. No Brasil, o ódio cresce porque a esfera pública virou um deserto para o pensamento e porque os pactos se tornaram improváveis pelo “jogo de soma zero”, onde é preciso derrotar o outro. Ao invés de propostas para o Brasil e lutas por reforma, temos uma disputa autofágica pelo poder, orientada por objetivos particularistas e pelo cinismo. Para o senso comum, esta é uma característica inerente à política, quando, na verdade, é sua negação. Entendo que um dos impasses do Brasil, aliás, consiste em termos uma democracia sem política.
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A intolerância é a primeira postura que autoriza o ódio. Nela, há um núcleo irremovível de convicções que produz identidade grupal.  Contestar este núcleo equivale a uma ameaça ao grupo. Esses que ameaçam são “poderosos” e “insidiosos”; agem de forma “solerte” e “imoral” e mereceriam todo desprezo. Podem ser os tutsi, em Ruanda; os ibos na guerra civil da Nigéria; os armênios na Turquia; os judeus na Alemanha nazista; os “gusanos” em Cuba; os “terroristas” na ditadura militar; as “feiticeiras” na Idade Média; os negros no apartheid; os homossexuais no Irã; os albaneses no Kosovo; os “infiéis” para o Islã.

Os que odeiam o fazem sempre no plural, já que não podem conceder ao outro a honra de individualizá-lo. No ódio, se trata de desconhecer a humanidade do outro. Não se sustenta tal pretensão diante de uma pessoa concreta, com nome e olhos. É preciso, antes, transformá-lo em um ajuntamento, em um coletivo repugnante, em uma manada. Não por acaso, os nazistas raspavam as cabeças dos judeus e lhes retiravam todos os pertences e as roupas antes de encaminhá-los às câmaras de gás, em grupos. Não por acaso, se disseminou entre as polícias a expressão “vagabudos” para designar suspeitos. Não por acaso, a polarização protopolítica no Brasil virou xingamento entre “petralhas” e “tucanalhas”. O ódio tem muitos nomes, mas, onde se instala, promove a mesma dor e a mesma escuridão.

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