Sobre o termo “raça”e o que aprendi com Dolezal

Essa semana as redes sociais entraram em curto debatendo o caso de Rachel Dolezal, uma mulher branca que, através de tratamentos cosméticos e uma rede de mentiras, se passou por negra e se beneficiou profissional e socialmente disso. Durante a discussão foi possível perceber um forte questionamento de que a, cientificamente obsoleta, terminologia “raça” significa nos dias de hoje. Muitos se mostraram confusos e tentaram associar raça a uma questão de performance, tal como gênero e, portanto, sujeito a auto-identificação e manipulação individual. Então, na tentativa de sanar essas dúvidas, sigo:

por Leopoldo Duarte no Revista Fórum

OPosto

Primeiramente, vale ressaltar que o que está em debate não é se categorizar pessoas em raças ainda seria válido ou não. A mesma ciência que endossou a tese católica de que negros seriam seres humanos inferiores refutou tal hipótese. Então, não é nenhuma novidade argumentar que somos todos uma mesma espécie, vindos dos mesmos ancestrais evolutivos e ipso factum. Contudo, a cultura discriminatória nascida dessa união é real e palpavelmente duradoura. Para esses argumentadores queria deixar escuro que o movimento negro não tem dúvidas de que não somos inferiores, portanto, se nós, os mais prejudicados por essa suposição, raramente questionamos o uso, é, justamente, porque ele é válido para fins comunicativos. Sendo assim, receio que o que incomoda mais essa gente que se incomoda com o uso desse termo seja o dedo apontado pra origem européia e “científica” desse termo. De qualquer forma, quem tem tempo pra se preocupar com o léxico mais apropriado que essa catalogação branca de seres humanos, revela o total afastamento do combate diário contra os efeitos nada abstratos do racismo na vida (e morte) de milhões de pessoas.

Dito isso, o caso Dolezal sugere uma forte relação entre a identidade social negra com o racismo. Prova disso são os inúmeros casos de agressão que ela fabricou ao longo dos anos. Denúncias de suásticas, invasões domiciliares, uma forca pendurada no seu quintal e até uma extensa carta de ódio os quais só ela viu ou poderia ter implatado – segundo investigação policial – são alguns exemplos. Isso porque seria impossível conceber uma pessoa negra da diáspora (empoderada) que desconheça discriminação na pele.

O que difere Dolezal de pessoas nascidas negras é que ela teve o (branco) privilégio de elaborar as próprias agressões que “sofreu” e tem a liberdade de lidar com racismo somente quando bem preferir. Um fato importante quando entendemos que tal como qualquer minoria social, a nossa identidade política se dá pela opressão que compartilhamos. Assim como militantes LGBT e feministas, negros e negras estão unidos pela dor de se viver numa sociedade que preferia que a nossa existência fosse livre de autonomia ou sumariamente erradicada. A nossa especificidade, porém, está no fato de que o construto social é indissociável do biológico, e diferente da transexualidade, o dado “raça” é geneticamente herdado e inato. Ou seja, nós herdamos/transmitimos a opressão que sofremos e não podemos acender o OFF por vontade própria. Contudo o mais cruel nessa comparação é que, além de ser geralmente feita por pessoas cis, ela ignora o fato de que pessoas trans não escolhem ser assim e se assumem para viverem suas verdades e não um castelo de mentiras com acesso direto ao sucesso social e profissional. Além da inferência de que gênero tem relação direta com os artifícios cosméticos e indumentária (enganadores) que Rachel usou para enganar as pessoas.

Agora, o que mais me incomodou no argumento de que a identidade racial seria meramente um construto social, é a implícita indicação de que ser negro seria uma variante da norma. Esta coincidentemente carente de melanina. Ou seja, a subentendida ideia de que ser branco seria uma identidade primordial. E o mais risível disso é que geralmente esse comentário – pró-transracialidade – é acompanhado da alegação de que “viemos todos da África”. Pois bem, se somos todos igualmente africanos, então por que nosso alicerce cultural não é?! Se cada um se identifica com a raça que bem entender, por que estamos discutindo isso agora e não quando Michael Jackson fez sua transição décadas atrás? Racismo, talvez?! Aposto que a própria Rachel diria que sim, pois ela, apesar de tudo, é uma das poucas pessoas brancas que fez o dever de casa e foi além da definição de quinta série do que é racismo.

A partir de tudo isso, acredito que negros somos todos os que convivemos cotidianamente com o peso de se viver numa cultura construída por e para pessoas brancas. Talvez numa sociedade cujo ideal pós abolição foi de segregação como nos EUA seja possível falar em performatividade racial, mas por aqui a política foi de embraquecimento e criminalização. Logo, por aqui é bem mais difícil definir quando tantos negros fazem questão de esconder seus “pés na cozinha”. Todavia, tanto lá quanto aqui, é impossível se afirmar uma pessoa negra quando se desconhece – ou se ignora solenemente – o sentimento de impotência frente a todas as injustiças e barbáries cometidas contra o povo negro.  Quando se desconhece a dificuldade que é pensar em colocar filhos no mundo quando se sabe que o racismo estará presente na vida dessa criança, provavelmente, desde o pré-natal – ou ausência de. Quando se sabe que a diáspora não narra somente a trajetória de remoção e espalhamento das etnias africanas pelo globo, mas também a erradicação da África da vida de todos os que sobreviviam ao trajeto – e, hoje, de seus descendentes. Descendentes de escravos dificilmente conhecerão o sobrenome verdadeiro de seus antepassados, seu país e tribo de origem específicas, que língua falavam, quais deuses cultuavam e nem nada que descendentes de imigrantes europeus orgulhosamente recitam. Ou quando não se sabe como é difícil enxergar beleza em si por ser inteiramente diferentes dos referenciais de beleza exibidos a exaustão.

Por fim, gostaria de dizer que seria realmente admirável se todas as pessoas brancas preocupadas em definir o que significa ser negro demonstrassem o mesmo ímpeto para identificarem o que significa ser branco numa sociedade cega pelo ideal de branquitude vigente. É particularmente triste ver pessoas da comunidade LGBT querendo definir o que significa ser de outra minoria quando sabemos que por trás de toda tentativa de descobrir a raíz da homossexualidade se esconde a intenção de curá-la, já que a heterossexualidade permanece isenta de dissecação. É como se negros não tivessem direito a se autodefinir, nem de identificar os nossos. É como se mais uma vez houvesse um sinhozim nos dizendo quem somos, como devemos agir e o que devemos contestar. Isso para não me alongar e discutir quão surreal o fato de que, se o mundo realmente enxergasse Dolezal como uma mulher negra, ela dificilmente teria todo esse destaque em tantos canais de comunicação. Com tantas mulheres negras aptas para debaterem suas vivências, é absurdamente cruel perceber como a mídia branca descaradamente prefere ouvi-las sob a perspectiva de uma mulher mitômana, porém branca.

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