“A violência não acontece de um dia para outro, acontece com pequenas agressões verbais e a gente não se dá conta. A gente vai deixando passar, um cala boca, você é idiota, começa assim. Logo em seguida o pedido de desculpa. E a gente sofre violência psicológica e não dá por conta que isso é violência, e isso tende a crescer.”
O desabafo acima é da técnica em Enfermagem Thais Hipólito, 39 anos, sobrevivente de feminicídio, em 2021. O agressor foi seu primeiro namorado, e marido há 18 anos. Eles tiveram três filhos, uma menina de 17 anos e gêmeos de seis anos.
A situação começou a piorar, segundo ela, depois da separação. De acordo com Thais três meses após o término, ao visitar as crianças, sofreu agressões do ex. Registrou ocorrência e teve medida protetiva que impedia o agressor de se aproximar. “A nossa filha que na época tinha 11 anos tentou intervir botando a mão para ele não me bater, ele acabou torcendo o braço dela. Consegui expulsar ele e foi embora, fiz uma medida protetiva, pedi uma estendida para as crianças, mas o juiz entendeu que ele não apresentava risco para as crianças.”
A medida não foi renovada e ela por um breve período viveu em paz, contudo logo vieram as agressões psicológicas e verbais, até mesmo da atual companheira dele. “Ele não pagava pensão, não ajudava com nada, nem levar o filho ao médico, eu tinha que trabalhar, sustentar e dar conta de tudo.”
Em maio de 2021, após um plantão de 18 horas de trabalho ela foi agredida novamente. Na noite anterior ele chegou a mandar um áudio dizendo que queria fazer uma chamada de vídeo para falar com as crianças, ela disse que estava trabalhando e não teria como, mas que no dia seguinte, sim. “Perguntei porque ele não havia mandado [mensagem] para a filha mais velha, ele disse que ela não respondia, que eu tinha feito a cabeça dela, me xingou e eu estava no trabalho, no plantão noturno, como técnica de enfermagem.”
No dia seguinte, um domingo, quando seria a folga dela, e em que ela se divertia com os filhos, ele apareceu. Thais estava sozinha em uma parada de ônibus, quando o ex se aproximou e simulou um assalto, ela fez de conta que não havia reconhecido.
“No momento que ele falou que era um assalto pensei que ele queria me dar um susto, me bater e ficar por isso mesmo. Uma pessoa com quem tu viveu 18 anos, tu não acha que vai fazer algo assim tão sério. Ele me deu um mata leão e a primeira facada no pescoço, defendi meu rosto, tive facada no seio, costas, no braço, abdômen e a minha sorte que um rapaz apareceu para me ajudar. Mesmo com o rapaz ele me esfaqueou mais uma vez nas costas. Eu tenho marcas de defesa na mão, no braço.”
Na ocasião o agressor fugiu e acabou preso horas depois em Balneário Pinhal, no Litoral Norte, e confessou o crime à polícia. O julgamento deve acontecer em 2024.
“Meu corpo me lembra todos os dias, através das cicatrizes e das intensas dores das sequelas. Sinto medos profundos e irracionais a cada data que marca os meses passados do atentado, são marcas que foram profundas, marcas deixadas no corpo e na alma. São marcas que nunca vão ser apagadas. Toda vez que olho no espelho eu lembro o que aconteceu e quanto eu lutei para me manter viva por causa dos meus filhos”, conta.
“A gente sempre acha que é uma história que é contada por outra pessoa”
“A importância de dar voz para nós mulheres sobreviventes é por conta da conscientização. Nós mulheres, como foi meu caso, que denunciei uma vez e não fiz uma outra medida protetiva achando que a gente vai conseguir, por meios próprios, ou que o parceiro vai se importar com ela ou com os filhos, ser mais tolerante… Não, não existe nada disso, não existe consideração, nem pela história que viveu com a gente. Então que dê voz para nós sobreviventes para ficar um alerta para outras mulheres, que a gente não pode subestimar o ser humano. A pessoa pode ter vivido anos com a outra, mas quando quer fazer o mal ela faz e eles dão sinais o tempo inteiro. E a gente até sabe que é um sinal, mas não quer acreditar.”
Também sobrevivente de feminicídio, Carol Santos, do Movimento Feminista Inclusivas, tinha 19 anos quando foi vítima de tentativa por um ex-namorado. Foi em abril de 2000. “Ele foi até a minha casa, me deu um tiro pelas costas, matou o meu namorado e se suicidou. Passei seis anos dentro de casa, vendo o meu corpo definhar, criar feridas. Naquela época, não havia a lei Maria da Penha. Não tive informação nenhuma de como poderia continuar a minha vida numa cadeira de rodas”, relata.
Ela voltou a estudar, contudo, ainda com o sentimento de culpa. “Foram 13 anos em que carreguei esse sentimento. Ninguém conversava comigo. Ninguém me dizia ´Tu és uma vítima, tu não és uma culpada. A gente sabe que a culpabilização das mulheres em relação a violência é muito forte. Somos culpadas por não querermos mais os caras, não querer continuar relacionamentos tóxicos, abusivos.”
Tudo começou a mudar, quando conheceu a jornalista Télia Negrão, do Levante Feminista, e de participar de uma atividade dos 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher. A partir de então, ela está na militância há 10 anos, sendo uma das fundadoras do Movimento Feminista Inclusivass, que este ano lançou a 2° edição do Projeto Histórias Contadas, criado em 2021 e que reúne relatos de sobreviventes de feminicídio no Rio Grande do Sul.
“O [projeto], lançado em novembro, amplia o debate, já pensando em uma legislação voltada a uma política pública de cuidado para as sobreviventes. E estamos ampliando a participação nacionalmente.”
Conforme enfatiza Carol, é muito importante dar voz as sobreviventes de feminicídio. “Elas seguem vivas com as marcas da tentativa de um feminicídio, com as dores, com os danos causados, tanto físicos, quanto psicológicos. Isto não é falado. O Estado prefere contabilizar os corpos do que dar voz, suporte e garantias. Falar das sobreviventes é acender esse alerta”, afirma.
Vazios assistenciais
O Rio Grande do Sul vive uma epidemia de violência contra a mulher nos últimos anos. E se agravou no período da pandemia, quando as mulheres ficaram em isolamento nas suas casas ao lado dos agressores. Realidade confirmada por mulheres que estão na linha de frente do combate à violência.
Somado a esse contexto, pontua Carol, houve principalmente nesse período da crise sanitária, ausência de políticas públicas. “Não tem como se falar de violência contra as mulheres se não tivermos um governo comprometido com essa garantia. O abandono político diante da vida das mulheres se reflete no aumento dos crimes de feminicídio e de tentativa de feminicídio e, ainda, com o aumento dos crimes de estupro. É um abandono. A Rede Lilás foi fechada, a Secretaria de Políticas para a Mulheres não existe mais.”
O Brasil registrou em 2022 o maior número de estupros da história, de acordo com a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 74.930 vítimas, sendo que mais da metade (56.820 mil casos) são estupros de vulnerável, ou seja, crimes praticados contra menores de 14 anos.
Ao comentar sobre a questão das sobreviventes de feminicídio, em especial aquelas que ficam com sequelas, Carol ressalta que há falta de dados, de estatística. “Quantas das mulheres que são vítimas de violência se tornam mulheres com deficiência? Mesmo as mulheres que não têm deficiência não conseguem acessar uma rede de enfrentamento, uma delegacia, ter uma casa de acolhimento. As próprias mulheres trans sofrem uma invisibilidade muito cruel. Os crimes de violência contra a população LGBTQIAP+ são crescentes, existem, mas não fazem parte da estatística.”
Voltando ao caso das mulheres portadoras de deficiência, Carol pontua que, estando ao lado dos seus agressores, fica difícil denunciar, buscar ajuda, por dependerem daquele cuidador. “Os dados do Rio Grande do Sul não mostram quem são as mulheres que sofrem violência e onde estão.”
Conforme aponta Lara Werner, sanitarista e extensionista da Clínica Feminista* da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), no estado gaúcho há vazios assistenciais, principalmente nas regiões rurais. “Imagina você passar por violência sem ter uma rede de serviços próxima que possa acessar em 30 minutos ou, no máximo, uma hora? O Estado sofreu golpes consideráveis contra as políticas de enfrentamento a violência”, afirma.
Segundo relata Lara, há mulheres que tem tido danos físicos, psíquicos, bastante severos. Para ela, o judiciário infelizmente não tem lidado com a extensão e a particularidade desse tipo de violência.
“Há muita revitimização no itinerário institucional das mulheres vitimadas pela violência de gênero. Precisamos levar essa temática a sério. O movimento Mães de Maio tem uma lição de estatística para nos dar: quantos mortos o Estado pode tolerar? Não é para nenhuma pessoa morrer sob a responsabilidade do Estado. Diante de cada mulher violentada e vitimada, por vezes letalmente, pela violência de gênero, é preciso encarar que esse feminicídio também é provocado pelo Estado a partir do momento em que não dá a devida importância para isso.”
De janeiro até novembro deste ano, segundo o Monitoramento dos Indicadores de Violência Contra as Mulheres no Estado do Rio Grande do Sul, o estado registrou 80 feminicídios consumados e 213 tentativas.
“Os números sobre a violência de gênero não revelam a possibilidade do percentual de subnotificação. Quantos casos que não se notificam para cada caso que se notifica? Temos que prestar atenção em outro ponto. Vejam o caso da Elisa Samúdio (namorada do goleiro Bruno de Souza, do Flamengo, vítima de feminicídio cujo corpo nunca foi encontrado). Veiculam-se os dados que chegam à segurança pública e eles reduziram… Mas aumentou o número de pessoas desaparecidas”, questiona Lara.
“A gente respira um pouco mais aliviada com a notícia de que os feminicídios estão diminuindo, mas as famílias continuam angustiadas porque tem situações em que o corpo das pessoas sequer aparece. Pessoas desaparecerem em uma democracia não é aceitável. Onde estão essas mulheres? A gente precisa falar sobre isso”, acrescenta.
Necessidade de legislação
Segundo dados da Lupa Feminista – uma parceria com o Levante Feminista Contra o Feminicídio nacional e estadual – para cada vítima de feminicídio, há duas sobreviventes. “Percebemos o quanto é urgente criar uma legislação, que é o que a gente vem buscando enquanto movimento”, expõe Carol.
De acordo com ela, há relatos de sobreviventes que estão há seis meses esperando o Bolsa Família. “Isto tem que ser prioridade para essas mulheres poderem continuar. Os movimentos feministas que gritam tanto pela questão do feminicídio, têm que gritar também por quem fica viva. Precisamos desse novo grito”, complementa.
Para Lara, trabalhar com sobreviventes de feminicídio e seus familiares, sobretudo os filhos, é lidar com a ação coletiva do trauma e com características muito específicas. “Por exemplo, as perícias são momentos de muito constrangimento, de pouco preparo social para abordar essas mulheres, pouca compreensão do que significa viver com um trauma cotidianamente.”
Na avaliação da sanitarista, o Rio Grande do Sul tem falhado em relação à reabilitação física de mulheres vitimadas pela violência. “Estamos falando de pessoas fortemente lesionadas que deveriam estar acessando fisioterapia, por exemplo. Tentamos armar redes para atender a essas demandas na medida em que elas nos aparecem.”
Lara pontua que existe um processo de reabilitação psíquica, de entender o tamanho da ferida. “Vemos que, muitas vezes, sobreviventes de feminicídio precisam mudar de cidade ou de estado para não correrem o risco de encontrarem seus agressores ou familiares desses agressores. O estado de alerta é constante”, frisa.
Carol acredita na educação dos nossos filhos e filhas como uma luz no fim do túnel. “Tenho um menino e uma menina. O Robert tem 10 anos e, desde quando estava na minha barriga, ele acompanha meu ativismo, acompanha todo esse processo da mãe ativista e sobrevivente. Acredito também no comprometimento dos governos. Não tem como frear a violência se não tivermos o comprometimento dos legisladores também”, conclui.