“Sou o sol da Jamaica, sou a cor da Bahia”¹ O samba-reggae como atlântico negro baiano²

FONTEPor Jéssica Caroline Gouveia Santos³, enviado ao Portal Geledés
Lazzo Matumbi (Foto: Alfamor / Divulgação)

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo contextualizar o surgimento do samba-reggae, gênero musical que nasce na cidade de Salvador, difundido inicialmente por Neguinho do Samba, nos anos 1980. Este tem como primeira influência o samba da Bahia com seus ritmos sagrados do candomblé, suas expressões musicais de carnaval, suas culturas populares e o reggae da Jamaica de Bob Marley, de Jimmy Cliff com contribuições do ska e do rocksteady. Através disso, entender o contexto da diáspora africana os elementos que se fortalecem por meio da música negra no Brasil, intercambiando a teoria de Atlântico Negro difundida pelo sociólogo afro-britânico Paul Gilroy (2001). Por fim, investigar uma das vozes da música preta baiana, oriunda do bloco afro Ilê Aiyê: a do cantor e compositor Lazzo Matumbi.

Palavras-Chave: Samba-Reggae, Atlântico Negro, Música Negra.

INTRODUÇÃO

A primeira ideia deste trabalho é entender o surgimento do samba-reggae, na década de 1980 na cidade de Salvador, junção do samba da Bahia com o reggae da Jamaica, intercambiando a ideia de Atlântico Negro, do sociólogo afro-britânico Paul Gilroy (2001). Lança um olhar para como essa linguagem musical traz algumas afirmações do processo de entendimento musical e cultural negro baiano deslocando as disposições de poder pautado na afirmação e libertação do povo preto. A partir da teoria de Gilroy que define que, apesar da diáspora africana uma rede de descendentes sustentados especialmente na cultura, reconfigura, ainda que parcialmente, uma memória dessa ancestralidade. Ainda para Gilroy (p.161) examinar o lugar da música no mundo atlântico negro significa observar a autocompreensão articulada pelos músicos que têm produzido, o uso simbológico que lhe é dado por outros artistas e escritores negros e as relações sociais que têm produzido e reproduzido a cultura expressiva única, na qual a música constitui um elemento central e mesmo fundamental. Nesse contexto, no capítulo 1 explicitam-se as dimensões do surgimento do samba-reggae enquanto gênero musical de ascendência afro-baiana pautado na percussão e com questões políticas, raciais e sociais. Nele mostra-se como diferentes ritmos se entrecruzam comparados a formação intercultural e transacionada ao qual Paul Gilroy chamou de “Atlântico Negro”.  No capítulo 2, aborda-se aspectos mais oriundos da ideia de atlântico articulados a música negra e como esta pode desempenhar um papel eficiente na construção de perfis negros dentro e fora do cenário musical. No capítulo 3, examinar um pouco da história de Lazzo Matumbi, cantor, compositor e ativista dos movimentos ​que lutam contra o racismo e pelos direitos humanos, ex-integrante do bloco afro Ilê Aiyê entre 1978 e 1980, uma das maiores vozes da Bahia, denominado por muitos admiradores, “A voz da Bahia”.

“A BAHIA TAÍ NA BOCA DO POVO DO MUNDO”⁴: O SURGIMENTO DO SAMBA-REGGAE

Nasce na Bahia em 21 de junho de 1995, Antônio Luís Alves de Souza considerado por muitos como o “pai do samba-reggae”, também conhecido como Mestre Neguinho do Samba. Foi fundador e um dos diretores do grupo Olodum e da Associativa Educativa e Cultural Didá. Juntava instrumentos de percussão e dos vocais que caracterizavam o estilo percussivo que faz o encontro dos surdos, taróis e dos repiques e que levaram a Bahia para fora do Brasil. As influências que fundaram esse estilo também vinham do soul de James Brown, do rock de Jimi Hendrix, das coreografias dos Jackson Five, da luta do  Partido dos Panteras Negras e através dessa estética norte-americana surgia o Ilê Aiyê, em 1974, com a junção do samba e ijexá, e também da articulação entre Bahia, EUA e Jamaica que emergiam de discursos como Black power, Black is beautiful como na composição “Que Bloco é Esse” onde afirmam que “somos crioulo doido, somos bem legal, temos cabelo duro, somos black power”. Assim como na composição “J. América Brasil”:

Sou Ilê Aiyê da América africana/ senzala barro preto Curuzu/ sou negro Zulu/ Garvey/ Liberdade e Brooklin Curuzu Aiyê/ Johnson com seu pulso/ encantou a todo o mundo/ Jimi Hendrix com seu toque universal/ reverendo Luther King/ a liberdade e a palavra de fé/ Fannie Lou Mississipi/Luta e resistência/Da mulher.

Na Jamaica, o movimento rastafari tem no reggae de Bob Marley um símbolo da luta antirracista. O reggae é um gênero musical que nasceu nos barracões de zinco das favelas jamaicanas, em um período de intensa experimentação musical, absorvendo as contribuições do ska e do rocksteady e canalizando tudo em um novo gênero musical ao final da década de 60, também muito associado ao movimento religioso rastafari. O contato entre Bahia e Jamaica chega com a vinda de Bob Marley, em 1980 no Rio de Janeiro, e Jimmy Cliff, em 1981 em Salvador. Algumas canções como “Brilho de beleza”, do Muzenza ativam a memória para essa junção da Jamaica com a Bahia:

O negro segura a cabeça com a mão e chora sentindo a falta do rei/ quando ele explodiu pelo mundo ele mostrou seu brilho de beleza/ Bob Marley pra sempre estará no coração de toda raça negra/ quando Bob Marley morreu foi aquele chororô na Vila Rosenval/ Muzenza trazendo Jamaica, arrebentando neste Carnaval.

Assim sendo, o ritmo jamaicano ganhava espaços entre jovens e movimento negro na Bahia e assim nascia o samba-reggae produto da movimentação afro-baiana com tradição percussiva com referências internacionais que ecoava pela resistência do povo negro, sua afirmação, a negação da condição de escravo e a análise da repercussão dessa escravidão na atualidade.

MÚSICA PRETA: MUNDO ATLÂNTICO NEGRO BAIANO

Há tempos o cenário cultural da música tem sido marcado por suas origens ocidentalizadas e por um status mercadológico com convenções e premissas que dispõe de regras estéticas excludentes. Estes ocultam os interesses musicais de outros atores presentes na sociedade, como a população negra, visto que essas questões se tornaram politicamente decisivas, uma vez que essas formas culturais têm colonizado os interstícios da indústria cultural em nome não apenas dos povos do atlântico negro, mas também dos pobres, explorados e reprimidos de toda parte (GILROY, 2001, p.165). O samba-reggae é uma linguagem musical negra, que usa da percurssão para integrar pessoas de diferentes grupos, comunidades e realidades sociais, e possuem símbolos característicos da diáspora africana que impactam através das músicas em questões do âmbito social e político. Inspirados pelo contexto internacional, a militância negra lutava pelas desigualdades existentes através da reafirmação da sua identidade e o e as letras das canções se tornavam esse espaço de resistir. A produção musical dos anos 80, incorporava esses símbolos, ligando as características africanas, ao som dos blocos afro, dos blocos de trios elétricos e das bandas baianas carnavalescas no cenário do carnaval. O Atlântico negro do sociólogo afro-britânico Paul Gilroy (2001) se entende como um sistema de comunicações globais, tanto em relação às pessoas, como às informações e mercadorias, que redefine novos padrões e, consequentemente, trocas culturais. É a partir disso, que as conexões e comunicações que o mundo atlântico dispõe integra o mundo da música, para Gilroy,

[…] a preeminência da música no interior das comunidades negras diversificadas da diáspora do Atlântico é em si mesma um elemento importante na conexão essencial entre elas. Mas as histórias de empréstimo, deslocamento, transformação e reinscrição contínua, abarcadas pela cultura musical, são uma herança viva que não deve ser reificada no símbolo primário da diáspora e em seguida empregada como alternativa ao apelo recorrente de fixidez e enraizamento. (2001, p. 209)

A noção ocidental de estética sustenta a ideia de texto e textualidade como formas principais de práticas comunicativas, sendo que para população negra o caráter oral, a relação com o corpo também são situações de comunicação cultural, e a música se torna vital em meio a valorização do povo negro, a reafirmação da sua identidade pautando a luta antirracista com as letras das canções, seus instrumentos musicais, a cidade de Salvador se africanizava se tornando afirmativamente uma cidade negra, para Gilroy (p.170), as estruturas transnacionais que trouxeram a existência o mundo do Atlântico negro também se desenvolveram e agora articulam suas múltiplas formas em um sistema de comunicações globais constituído por fluxos. 

LAZZO MATUMBI: A VOZ DA BAHIA

Lázaro Jerônimo Ferreira nome de batismo, já foi o Lazinho do Ilê ou Lazinho Diamante Negro hoje mais conhecido com Lazzo Matumbi⁵ é músico, intérprete, compositor e ativista dos movimentos contra o racismo e pelos direitos humanos. Nascido em Salvador, na região de Garibaldi teve o samba veio  primeiro passo na carreira musical, e desde o início dos anos 70 costumava frequentar o dia santo de São João no bairro da Federação, mesmo bairro do Terreiro do Gantois de Mãe Menininha, quando o então passou a tocar atabaque na batida da faca e do prato de sua mãe, fazendo a festa na vizinhança. Assim foram surgindo as primeiras composições e, ao apresentar suas primeiras canções nas rodas de amigos, começou chamar a atenção pelo timbre da sua voz. Teve o próprio grupo de samba, e foi voz do Ilê Aiyê entre 1978 e 1981, conseguindo dar o tom a sua arte e o impulso para seguir na música profissionalmente, assim afirmou⁶:

Foi no Ilê Aiyê que eu percebi que tinha algo diferente quando eu cantava. A reação das pessoas era altamente positiva, no sentido de olhar pra cima, ficarem felizes…sabe aquela coisa do semblante de felicidade que você começa a receber em troca?”

Depois de passar pelo Ilê, Lazzo inicia a sua carreira solo incorporando influências de ritmos como maracatu, xote, baião, a música negra da Bahia e da África, além das influências de Ray Charles e Marvin Gaye. Outro ritmo musical que incorporou a sua carreira foi o reggae. O estilo jamaicano, de acordo com ele abria portas para que pudesse usar a música como instrumento de resistência política e social. Já no início dos anos 90, após ter participado do show de Jimmy Cliff no Rock in Rio, Lazzo seguiu em turnê abrindo os shows do jamaicano por vários países ao redor do mundo, temporada que durou 3 anos. Hoje conhecido como a voz da Bahia, traz composições de extrema importância dentro do movimento negro, como “14 de maio” música escrita com Jorge Portugal que retrata como o Brasil possui uma dívida história com a população negra, visto que no dia 14 de maio, pós-abolição o negro teve que lutar para sobreviver,

[…] No dia 14 de maio, ninguém me deu bola/Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver/Nenhuma lição, não havia lugar na escola/Pensaram que poderiam me fazer perder/Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta/Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu/A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa/Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu.

Hoje, aos 63 anos, completou 40 anos de carreira solo como cantor do samba-reggae. A sua voz grave e rouca é marcante, ao ser questionado se tinha medo de perder shows ou patrocínios, Lazzo diz que “é minha dignidade e isso eu não vendo, não troco. Ela foi construída por meio dos meus pais⁷.”. Em “Alegria da Cidade” composição de Lazzo e do Jorge Portugal, a representação do samba-reggae, a junção da Bahia e da Jamaica aparece quando ele canta:

Eu sou o sol da Jamaica/Sou a cor da Bahia/Eu sou você (sou você) sou você e você não sabia/[…] Liberdade Curuzu, Harlem, Palmares, Soweto da alegria, soweto, soweto/ Nosso céu é todo blue e o mundo é um grande gueto/ […]Será que você não viu/Não entendeu o meu toque/No coração da América eu sou o jazz/Sou o rock, sou o rock, sou o rock, sou o rock n’ roll/Eu sou parte de você, mesmo que você me negue/Na beleza do afoxé ou no balanço no reggae/Eu sou o sol da Jamaica/Sou a cor da Bahia, oh da Bahia!

A partir dessa musicalidade, e das composições, mobilizo as ideias de Stuart Hall (1998), que identifica as culturas e as identidades culturais têm uma gramática própria, as quais servem de elemento organizador das novas construções sociais e culturais – o novo nasce de bases preexistentes. Assim mesmo com as ações de desumanização dos africanos, em terras colonizadoras, “os africanos na diáspora buscaram a criatividade e a organização, seja pela resistência direta ou mais acomodada, mantendo a cultura que tem em si muito da origem”. (2008, p. 191). Diante disso, capturo o questionamento “Por que a cultura brasileira é reconhecida e representada como sendo, basicamente, de matriz africana ou como dizemos afro-brasileira?” (2008, p.190). Ao mobilizar a ideia de dupla consciência, formulada pelo sociólogo inglês Paul Gilroy ao dividir as ideias sobre o eu dividido entre o continente de origem e aquele em que aportou o africano, é assim que a musicalidade brasileira, e o samba-reggae vai incorporando elementos de uma musicalidade afro-brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se me perguntar

De que origem eu sou

Sou de origem africana

Eu sou, com muito orgulho eu sou

 (Ilê Ayê)

Os movimentos negros do Brasil conseguiram escrever histórias de lutas e reconhecer o racismo como um aspecto estruturante da sociedade brasileira. Conseguiram desbancar a ideia de um mundo sem raças, um mundo mestiço formulado pela teoria da democracia racial. Assim como rearticular a ideia de raça, reivindicar questões politicas e sociais embasadas na noção de emancipação da população negra. Para Patrícia Pinho (2004, p.27) desde a colonização do Novo Mundo, e a dispersão dos africanos escravizados, a muitas Áfricas têm sido principal fonte de inspiração para as culturas negras que se criam e se recriam por toda a diáspora. Todo esse embate histórico também é construído no cenário musical onde o processo de apagamento que cantores e cantoras negras sofreram e ainda sofrem para conseguir viver e lutar por música preta. Existe um grande palco que não reconhece a dimensão que a música negra é capaz de atingir. Paul Gilroy entende que a música negra tem andado lado a lado com as lutas negras. A formação da identidade de atores negros sejam eles os que escutam, ou os que produzem passam no lugar da música afro-brasileira. A busca por afirmação dos laços com a África na Bahia se inicia nos anos 1970, e os blocos afros são os principais percussores dessa construção. Através das letras de suas canções, vestimenta, o estilo dos cabelos afros. O Ilê Ayê entende a África como fonte de conhecimento, o Olodum se utiliza do reggae da Jamaica, se aprofundando nos mitos do Egito. O samba-reggae não deixa de ser também uma criação do atlântico negro baiano, com suas composições que lutam pela existência da população negra, com a sua rede atlântica, diaspórica que faz junção de diversos ritmos e conceitos, entre eles os principais o samba e o reggae, “e esse som vem lá do Pelourinho, tão envolvente, segue o seu caminho⁸”. 


¹ Trecho da composição “Alegria da Cidade” de Lazzo Matumbi e Jorge Portugal. 

² Ensaio de cunho avaliativo apresentado ao componente TEE – Educação, Música e Insurgências Negras ofertado pelo Coletivo de Docentes Negros e Negras da FACED/UFBA.

³ Licencianda do curso de Pedagogia pela Faculdade de Educação, na Universidade Federal da Bahia.

⁴ Trecho da composição “Agradeça ao Pelô” de Moraes Moreira e Neguinho do Samba

⁵ Matumbi é um termo iorubá para designar uma pedra sagrada da Nigéria

⁶ Fala encontrada em sua biografia no seu site oficial disponível em: Biografia Lazzo Matumbi | Home.

⁷ Fala de uma entrevista dada ao site Alma Preta, disponível em Voz da Bahia, Lazzo Matumbi canta o amor pela negritude (almapreta.com)

⁸ Trecho da composição, “Samba-Reggae” do Grupo Olodum.

REFERÊNCIAS

AYÊ, Ilê. Que Bloco é esse? Salvador: 1993 (3min).

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. Tradução Cid

Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34, 2001.

HALL, Stuart. Da Diáspora. Liv Sovik (org). Tradução de Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no

Brasil, 2003.

MATUMBI, Lazzo. Biografia Lazzo Matumbi. Disponível em: Lazzo Matumbi | Lazzo Matumbi 

NEGO, Tenga. Brilho de Beleza. Salvador. Sony Music: 1990 (5min).

PINHO, Patrícia de Santana. A Bahia no Atlântico Negro. In.: PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004, p. 27-65

PORTUGAL, Antonio Jorge; FERREIRA, Lazaro Jeronimo. 14 de maio. Salvador: 2019 (5min)

QUEIRÓS, Viviam Caroline de Jesus. Quilombo de Tambores: Neguinho do Samba e a Criação do Samba-Reggae como uma Tradição Negro Baiana.  118 f. il. 2015. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

SAMBA-REGGAE: A Arma é Musical. Direção de Maira Cristina. Bahia: TVE Bahia, 2010 (75 min.).

PERFIL&OPINIÃO – Lazzo Matumbi. Direção de Carmen Paternostro: TVE Bahia, 2018 (57min e 54s).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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