SP enquadrou 31 mil negros como traficantes em situações similares às de brancos usuários

Levantamento do Insper com boletins de ocorrência de 2010 a 2020 mostra ainda influência de tipo de droga e grau de instrução do detido para conduta policial

FONTEPor Leonardo Fuhrmann, da Folha de S.Paulo
Manifestante na Marcha da Maconha, que ocorreu no último domingo (16) em SP - Felipe Iruatã - 16.jun.2024/Folhapress

Para a polícia de São Paulo, a diferença entre um traficante e um usuário de drogas pode estar na cor da pele. Ainda mais quando o acusado é flagrado com pequenas quantidades de maconha. Em razão disso, 31 mil pessoas pardas e pretas foram enquadradas como traficantes em situações similares àquelas em que brancos foram tratados como usuários.

Isso é o que aponta uma pesquisa do Núcleo de Estudos Raciais do Insper. Aqueles que são enquadrados por tráfico de drogas acabam autuados em flagrante e seguem presos pelo menos até a audiência de custódia, quando a Justiça pode decidir manter o réu preso ou colocá-lo em liberdade.

Quando o caso é tratado como porte para consumo próprio, o acusado fica sujeito a penas alternativas.

O número é suficiente para lotar pelo menos 40 dos 43 Centros de Detenção Provisória (CDPs) masculinos existentes no estado de São Paulo. O sistema prisional para presos provisórios conta também com um CDP feminino, em Franco da Rocha, na região metropolitana da capital. Segundo dados desta semana da Secretaria de Administração Penitenciária, 40 deles estão com superlotação.

Os autores do estudo, Daniel Duque, Alisson Santos e Michael França, analisaram 3,5 milhões de boletins de ocorrência feitos de 2010 a 2020 pela polícia de São Paulo.

Para mostrar o impacto do racismo na decisão policial, Duque comparou casos em que os detidos tinham o mesmo gênero e grau de instrução e estavam com a mesma quantidade da mesma droga. “Existe um desafio neste tipo de pesquisa que é conseguir retirar os outros aspectos de cada caso para isolar o aspecto de raça e cor”, afirma.

A conclusão do estudo é que a possibilidade de enquadramento como traficante é 1,5% maior se o suspeito for preto ou pardo em relação ao que ocorre se ele for branco, quando são comparadas pessoas de perfil semelhante (que tinham a mesma quantidade de droga, a mesma substância, a mesma idade, mesmo gênero etc).

Em um exemplo hipotético, 2.000 homens brancos com ensino superior são pegos pela polícia com uma quantidade de maconha. Desses, 1.000 são enquadrados como traficantes. Se 2.000 homens negros com ensino superior, o mesmo perfil e a mesma quantidade de maconha forem pegos na mesma situação, 1.015 são enquadrados como traficantes.

O percentual de 1,5% pode parecer pequeno, mas como são milhões de casos analisados, na prática ele significa que 31 mil negros foram enquadrados como traficantes em situações que pessoas brancas foram tratadas pela polícia como usuária.

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo disse que atuação das polícias do estado com relação ao consumo e tráfico de drogas é baseada na legislação vigente, “com critérios objetivos para diferenciar o usuário do traficante, independente da questão da raça, gênero, classe social, idade ou religião”.

Duque afirma que a lei 11.343/2006, que deixou de punir os consumidores de drogas ilegais e aumentou a pena dos traficantes, acabou provocando um encarceramento em massa. A lei não prevê critérios objetivos para a classificação e o enquadramento depende exclusivamente da decisão do policial —julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) que pode definir quantidades, ao menos para porte de maconha, se arrasta desde 2015, voltou à pauta da corte nesta quinta (20) e deve ser retomado na próxima terça (25).

Os pesquisadores apontam uma dificuldade não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos de isolar o aspecto racial. “A gente teve de comparar pessoas em situações semelhantes, para mostrar que o aspecto racial teve impacto também e não só outros fatores socioeconômicos”, afirma.

Para o coordenador do núcleo, Michael França, colunista da Folha, o número confirma o problema e aponta para uma realidade ainda maior. “Se levar em conta que o acesso ao ensino superior não é o mesmo entre brancos e pretos e pardos, a gente vai encontrar outros aspectos desta diferença de tratamento”, explica.

Ele aponta ainda os impactos que essa diferença de enquadramento provoca na vida das pessoas. “Os pretos e pardos já têm um acesso pior ao mercado de trabalho, e a situação fica ainda mais complicada quando alguém é apontado como suspeito de ser traficante, mesmo que depois não seja condenado pelo crime”, diz.

Segundo Duque, outros fatores como grau de instrução também são determinantes para a polícia decidir quem é consumidor ou traficante. As pessoas com ensino médio completo ou nível superior são tratadas mais como usuários, enquanto aquelas com menor grau de instrução acabam sendo classificadas como criminosos, mesmo se as circunstâncias forem semelhantes.

A pesquisa mostra que esse componente racial é mais presente nos casos em que as pessoas são detidas com pequenas quantidades de drogas consideradas leves, principalmente a maconha. A diferença também é maior nos casos de substâncias sintéticas e lisérgicas. Nos casos que envolvem grandes quantidades ou que envolvem drogas como o crack e a cocaína, porém, o enquadramento tende a ser o mesmo.

Para os autores, a quantidade de droga apreendida e o fato de a maconha ser considerada uma droga mais leve aumentam o poder de decisão do agente público na hora de configurar a pessoa como traficante de drogas. Os ministros do Supremo ainda discutem, no julgamento suspenso nesta semana, qual a quantidade mínima da substância para o porte dela passar a configurar tráfico.

Os dados também apontam para outros aspectos da diferença racial. Em localidades em que há maior proporção de negros em relação ao total da população, a diferença no enquadramento tende a ser menor. Também chamou a atenção dos pesquisadores que o critério racial tem maior impacto no enquadramento como traficantes entre 2014 e 2017, o período de maior crise econômica da década.

Ao longo do período, em torno de 80% das apreensões de drogas tiveram os envolvidos autuados por tráfico de drogas. Os números aumentaram ao longo do fim da década e chegaram a 84,3% em 2020. O número de pretos envolvidos nas ocorrências analisadas se manteve estável, na faixa de 7%, enquanto o de brancos caiu de 64,7% para 58,3% e o de pardos passou de 28% para 34,5%.

Por substâncias, a maconha é a substância apreendida em 65,2% dos casos de consumo e 36,3% de tráfico. A cocaína e o crack estão, respectivamente, em 22,3% e 10,9% dos enquadramentos em consumo e 37% e 24,1% de tráfico. Sintéticos e lisérgicos respondem por 1,5% em consumo e 2,6% em tráfico.

São Paulo foi o único estado a fornecer os dados para a pesquisa, apesar dos esforços, segundo os autores, para fazer um levantamento nacional sobre o assunto.

Leia a nota da Secretária da Segurança Pública de São Paulo na íntegra:

A atuação das polícias de São Paulo com relação ao consumo e tráfico de drogas é baseada na legislação vigente, com critérios objetivos para diferenciar o usuário do traficante, independente da questão da raça, gênero, classe social, idade ou religião. A responsabilidade individual é um princípio jurídico fundamental, onde a punição e a classificação do crime são baseadas nas ações do infrator e não em estereótipos.

As forças de segurança estaduais recebem treinamentos contínuos e têm seus procedimentos constantemente aprimorados considerando a política de Direitos Humanos. Por parte da Polícia Militar, as abordagens obedecem aos parâmetros técnicos disciplinados por Lei e são padronizadas por meio dos chamados Procedimentos Operacionais Padrão (POP). Ambas as polícias também possuem corregedorias, que não hesitam em punir seus agentes quando constatada qualquer irregularidade.

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