Stephanie Ribeiro: Afinal o que é apropriação cultural?

A colunista Stephanie Ribeiro relembra casos emblemáticos de apropriação de símbolos da cultura de negros, indígenas e povos latino-americanos: “Apropriação cultural NÃO É UMA CRÍTICA SOBRE O INDIVÍDUO BRANCO, mas sobre uma estrutura racista nociva que apaga e silencia os demais”

Por Stephanie Ribeiro Do Revista Marie Claire

Em todo debate que participo falando sobre gênero e raça, as pessoas me perguntam sobre apropriação cultural. Geralmente, a pergunta é:
_ “O que você acha de apropriação cultural?”
De uma forma como se quisesse minha aprovação para algo. Então, vou logo dizendo:
_”Quer usar o turbante? Usa. Nem eu, nem outra pessoa negra vai correr atrás de você com uma arma te impedindo de usá-lo.”

Respondo isso sempre tentando fazer uma piada, tendo plena convicção de que a maioria das pessoas nem sequer vai usar um turbante na vida, mas precisa ter a sensação de que seu PODER para tal continua garantido. A questão é que apropriação cultural não é sobre usar ou não turbantes, e sim sobre PODER. O poder que uma sociedade e sua, que se colocou no posto de dominante, no caso pela colonização, tem para definir que as demais culturas e, consequentemente, os integrantes dessa cultura, são inferiores em relação a ela, MAS, a partir do momento que essas culturas ou seus elementos são apropriados pela estrutura dominante, esses elementos perdem a inferioridade e ganham o status de exótico e/ou se tornam lucrativos.

Portanto, apropriação cultural é um fenômeno estrutural e sistêmico. Isso significa compreender que ele não pode ser entendido ou problematizado sob o ponto de vista particular, individual. Claro que um indivíduo pode usufruir da apropriação cultural de um grupo ou povo, quando não possui autocrítica ou conhecimento sobre o tema. No entanto, as consequências desse processo são sempre em nível coletivo, na estrutura: favorecimento do processo de marginalização desses grupos ou povos socialmente invisibilizados e oprimidos inconscientemente.

Ronaldo Fraga sofreu críticas por usar palha de aço nos cabelos das modelos (Agência Fotosite)

Num contexto capitalista, a apropriação cultural transpassa o desrespeito às culturas alheias, invisibilizadas diante da imposição da cultura europeia e norte-americana, e se torna lucrativa. Um exemplo disso foi publicado no site Fashion Forward, quando a grife francesa Isabel Marant usou em sua coleção de verão 2015 um bordado feito pela comunidade mexicana Sant-Maria Tlahuitoltepec (província de Oaxaca). Esse bordado é feito há 600 anos, sendo esse um símbolo da identidade dessa comunidade. A marca se apropriou do bordado, produzindo-o em larga escala, e passou a vender a peça que identificava como “tribal” pelo equivalente a R$ 1.000,00. Vale ressaltar que a peça original, feita por mulheres da comunidade, custava aproximadamente R$ 65,00. Vale apontar ainda que o enorme lucro obtido pela maison nem chegará proximo à comunidade, algo que, se distribuído, poderia ter possibilitado mais independência ou cobrir as necessidades desse povo.

É evidente que nem todos que compraram as tais peças sabiam disso. Porém, indiretamente, estão favorecendo a negligência e o roubo da cultura de um povo já invisibilizado, vítima de um processo terrível de colonização. Para esse povo, assim como em todas as comunidades originárias latino-americanas, a manutenção da sua identidade é mais do que estética: é uma forma de resistência e resiliência.

Existe por trás da questão da apropriação de elementos, símbolos, costumes de um povo ou população que não corresponde à cultura imposta pela colonização, um processo de exclusão ao reforçar a exotização e a marginalização não só desses elementos, mas também reafirmação da exotização e marginalização dos indivíduos dessa cultura que não correspondem ao padrão ocidental e eurocêntrico.

Por exemplo, o samba é um ritmo que nasceu entre a população negra pós-escravidão, população essa que era perseguida quando tocava samba, tocava tambores, dançava nas ruas e isso está registrado na imprensa da época. Entretanto, a partir do momento que o samba ganhou intérpretes brancos, o ritmo passou a ocupar outros espaços e, consequentemente, conquistou o mundo. Ele deixou de ser a expressão de uma cultura negra, e passou a ser um elemento visto como marca da identidade cultural brasileira (ou seja, de todos) – mas, claro, “melhor” executado por pessoas negras, seja na dança, nos instrumentos ou nos lugares de ocorrência da música (comunidades, quadras de samba, etc). Mas um elemento de todos os brasileiros. Portanto, apropriação cultural não é sobre “apreciação”, é uma forma de apagamento.
Tanto é assim que existe um samba que se chama “Vai Cuidar da Sua Vida”, em que Geraldo Filme cantava mesmo antes de eu nascer:
“Crioulo cantando samba era coisa feia. Esse negro é vagabundo. Joga ele na cadeia. Hoje branca tá no samba. Quero ver como é que fica. Todo mundo bate palmas quando ele toca cuica.”

Mallu Magalhães: a cantora foi acusada de apropriação cultural por fazer um videoclipe apenas com bailarinos negros (Foto: Getty Images)

Quando se apaga a existência e a vivência de muitos negros sambistas, inclusive de Cartola, que, veja bem, é menos conhecido no Brasil e no mundo que Tom Jobim, se mantém uma lógica racista que retira a genialidade e a identidade de sujeitos socialmente marginalizados. Logo, não é bem visto em suas mãos tanto quanto é bem visto em outras quando essas são brancas. Sendo assim, uma forma de manter negros em seu lugar lhes dizendo quando eles podem ou não podem ser vistos, ao reduzir os elementos culturais e as culturas não hegemônicas a uma visão distorcida, vista de fora para dentro. Ao falar de apropriação cultural, estamos questionando um ramo dessa “árvore do racismo estrutural”, que atinge diversos povos não brancos, criticados, perseguidos e massacrados por sua identidade não branca.

A revista curitibana TopView, em sua edição de maio de 2015, numa coluna de moda escreveu: “Os turbantes são para quem ou tem cabelo ruim ou quer fazer extravagância, gritar no primeiro contato” (pág. 58). Não preciso lembrar que cabelo ruim é um termo usado para designar cabelos crespos e cacheados em nosso país, que “se orgulha” da miscigenação. Orgulho esse que vive reafirmando ideias racistas, como de qualificar como ruim esse tipo de cabelo é comum entre negros e mestiços. Por trás de muitos elementos, símbolos, costumes que foram sendo apropriados ao longo dos séculos, existe uma história de imperialismo, colonialismo e genocídios. É fato, portanto, que muita gente ao desconhecer isso entende as ações de grupos não brancos como sendo radical e agressiva, desvirtuando o sentido dessas atitudes. A agressividade  é fruto do ódio ao sistema, ódio comprensível num país que a cada 23 minutos mata negros.

Para não existir mais apropriação cultural é necessário falar sobre o racismo. Entender esse processo de uma cultura ser considerada superior a outras, que vêm de povos racialmente marcados, serem vistas como inferiores, é uma manutenção da estrutura racista.  O processo de apropriação é quando se tira o sentido de alguns símbolos, em especial os religiosos, se desumaniza os indivíduos dessa cultura e se entende que os mesmos símbolos quando usados por eles não têm valor. Alimentasse os estereótipos racistas e, claro, se obtém lucros sobre esses símbolos sem o consentimento dos membros da cultura apropriada. Não falaríamos sobre apropriação cultural se houvesse respeito a todas as culturas da mesma forma, e, claro, se as pessoas entendessem que determinadas culturas e seus símbolos só podem ser usados caso haja consentimento ou ligação com essa cultura, como o caso de Isabel Marant explica, ou sem nem uma pesquisa aprofundada sobre tal cultura.

Participantes da Marcha Orgulho Crespo, em São Paulo (Foto: Divulgação/Orgulho Crespo)

Sendo assim apropriação cultural NÃO É UMA CRÍTICA SOBRE O INDIVÍDUO BRANCO, mas sobre uma estrutura racista nociva que apaga e silencia os demais. No Brasil, vivenciamos mais de 500 anos de apropriação de símbolos indígenas e de negros. Há mais de 500 anos, nossa cultura é perseguida como ainda acontece em terreiros de candomblé. Há mais de 500 anos, pintamos os rostos das crianças com guache no Dia do Índio, enquanto estamos presenciando terras indígenas serem roubadas e indígenas sendo dizimados, num processo de apropriação de florestas. Há mais de 500 anos, mulheres negras são “mulatas exportação” que recebem míseros segundos na TV, sambando seminuas. É óbvio que algumas pessoas se manifestam com raiva, quando, por exemplo, vêem que aquilo que elas usavam como uma forma de se conectar com seus semelhantes perde totalmente o valor e o sentido ao ser apropriado pela indústria da moda, se tornando “fashion” e “descolado” – essa mesma indústria que nos exclui. Essas pessoas estão reclamando sua existência. Reagindo ao reconhecimento de suas vidas e culturas.

Por fim, sempre me pergunto: Por que a questão sobre apropriação cultural é tão recorrente? No fundo, as pessoas temem ser censuradas, mesmo que não haja poder real para quem é socialmente marginalizado censurar quem é dominante. No fundo, falta às pessoas entenderem que, muitas vezes, estão mais preocupadas em escutar alguém dizendo que elas podem usar algo (que geralmente elas nem usariam), ao invés de se questionar: “Por que a cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil?”.

O genocídio continua, e ele é alimentado também pelo processo de desumanizar sujeitos. A apropriação faz parte disso. Não é sobre escolha de objetos, mas, sim, sobre a existência dos sujeitos.

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