STJ contraria pedido da Procuradoria e mantém homem preso após reconhecimento ilegal

Herberth Santos foi detido em 2019 na zona sul de SP após uma série de falhas na investigação, aponta Ministério Público

FONTEFolha de São Paulo, por Rogério Pagnan e Artur Rodrigues
Herberth Silva Santos, 20, foi preso sob a suspeita de participação do roubo a um taxista. Ele foi condenado a mais de seis anos de prisão por um crime que família e amigos dizem que não cometeu - Karime Xavier/Folhapress

A Sexta Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) negou um pedido de habeas corpus para soltar Herberth Silva Santos, 20. A decisão contrariou manifestação do Ministério Público, que apontou haver “flagrante ilegalidade” no processo de reconhecimento que levou o rapaz à prisão.

Então trabalhador de uma confecção de bijuterias, Santos foi preso em 8 de novembro de 2019 na porta de um bar da zona sul de São Paulo, apontado como autor de um roubo ocorrido momentos antes em outra parte da cidade.

O testemunho de frequentadores do estabelecimento, incluindo o proprietário do local, de que o rapaz jogava sinuca no momento do crime e tinha acabado de sair para fumar não foi suficiente para convencer a Justiça de sua inocência.

A história de Santos foi contada na série “Inocentes Presos”, da Folha, como um dos exemplos de investigações a jato —trabalhos da polícia que duram menos de 24 horas e são um dos propulsores de prisões ilegais no país.

No caso dele, o inquérito foi concluído no mesmo dia da prisão, e a denúncia do Ministério Público ocorreu quatro dias depois, incluindo o sábado e o domingo.

O responsável pelo auto de prisão em flagrante não se deu ao trabalho de colocar Santos ao lado de outras pessoas para o reconhecimento, conforme recomenda a legislação brasileira. Os policiais chegaram até a elaborar um documento para dizer que isso foi feito, cumprindo a lei, mas a própria vítima do roubo desmentiu essa versão quando foi ouvida em juízo.

De acordo com a manifestação da subprocuradora-geral Ela Wiecko de Castilho, documentos apontam ainda que a vítima teria descrito os sinais característicos da pessoa a ser reconhecida, algo que deve preceder o reconhecimento formal pela polícia, “mas não há registro de quais seriam esses sinais”.

“O espaço para assinatura das testemunhas está em branco, não havendo indicação de que o ato tenha sido testemunhado. A sentença não abordou a matéria referente à legalidade, ou não, do reconhecimento pessoal. A decisão singular registrou ter havido o reconhecimento do autor do crime pela vítima, sem analisar possível violação ao art. 226, do CPP [que define como deve ser feito um reconhecimento]”, diz o documento.

Uma decisão do próprio STJ estabelece que a realização correta dos procedimentos de reconhecimento de suspeitos é uma obrigação, e não mera recomendação.

Para o ministro relator Rogerio Schietti Cruz, há, de fato, problemas no reconhecimento feito na polícia, mas, outras evidências sustentam a sentença.

“Portanto, não foi apenas o reconhecimento pessoal realizado pela vítima que embasou a condenação do paciente pela prática do crime de roubo; ao contrário, o édito condenatório foi lastreado também nos depoimentos dos policiais realizados na fase policial e confirmados em juízo”, diz trecho da decisão.

Os advogados de Santos também apontaram à Justiça problemas na versão dos policiais. De acordo com familiares, quando estavam no distrito policial, eles alegaram aos PMs que o rapaz não poderia ter participado do crime porque não sabia dirigir e, o assaltante, conforme relato da vítima, saiu dirigindo o veículo.

Foi por isso, sustentam os familiares, que os policiais mudaram a versão e passaram a dizer que Santos estava como passageiro do veículo e que o motorista conseguiu escapar.

Para a defesa, só essa versão dos policiais inocenta Santos, porque foi o motorista quem praticou o crime e não, o passageiro. O ministro, porém, afirmou que isso não é um problema.

“Irrelevante, portanto, para fins de se concluir pela autoria do delito em relação ao paciente, se ele era o motorista do veículo roubado ou o passageiro do automóvel, quando verificado que os policiais militares afirmaram, categoricamente e sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, que ele seria um dos ocupantes do referido veículo, relatos, esses, que se somaram ao reconhecimento pessoal realizado pela vítima”, disse.

Para o advogado Nagashi Furukawa, um dos defensores de Santos, a lógica utilizada pelo ministro é difícil de compreender.

“A vítima foi roubada por uma única pessoa. O Ministério Público acusa essa pessoa e diz que ela estava dirigindo o veículo roubado. O policial fala que eram duas pessoas no veículo e que ele prendeu o passageiro. E, a Justiça, diz tanto faz. Se ele estava dentro do veículo roubado, tem que ser condenado. Eu não consigo entender um raciocínio desse tipo”, disse.

A investigação relâmpago da polícia não ouviu os colegas de bar de Santos. Também não foi atrás de imagens de câmeras no local do crime que pudessem confirmar a identidade do assaltante.

O pai e amigos do rapaz saíram, então, em busca de pontos por onde o veículo roubado havia passado. Encontraram cinco estabelecimentos comerciais com câmeras apontadas de forma que comprovariam o verdadeiro autor do roubo.

Todos esses endereços foram levados para a Justiça seis dias depois da apresentação da denúncia, antes que as imagens pudessem ser apagadas, mas a magistrada do caso considerou inoportuna essa investigação.

As possíveis provas que poderiam apontar a verdadeira identidade do criminoso nunca foram, assim, juntadas ao processo. A magistrada também desprezou a versão das testemunhas e ainda determinou uma investigação de falso testemunho, porque considerou crível alguém deixar o bar para fumar jogando sinuca.

No recurso ao Tribunal de Justiça, os magistrados também desacreditaram as testemunhas.

“Dono de bar nunca vê nada. Ou está pondo a cerveja lá no fundo, ou era dia de folga e era o cunhado que estava lá, ou estava fazendo alguma outra coisa. É muito curioso, a experiência mostra, testemunha dono de bar com tanta convicção desse jeito”, disse o desembargador Cassiano Ricardo Zorzi Rocha no julgamento de um recurso do réu.

Santos, em entrevista anterior à Folha, disse que tinha esperança de poder voltar a acompanhar o crescimento da filha Lorena, 3. “Não sou o único [inocente] lá dentro. E alguns deles viraram a cabeça. Entra lá trabalhador e sai de lá ladrão, traficante, porque está revoltado. A polícia, o Estado mesmo, está criando cobras, fazendo inimigos. A pessoa que era trabalhadora, que era amiga deles, vai virar inimiga”, disse, durante uma saída temporária.


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