STJ decide por unanimidade federalizar as investigações dos ‘crimes de maio’ de 2006 no Parque Bristol, SP

Em 14 de maio de 2006, cinco jovens foram atacados por um grupo de homens encapuzados. PGR declarou que a apuração do estado de SP foi meramente 'formal, protocolar, ignorando a busca da verdade e das conexões entre crimes quase simultâneos e extremamente similares'.

FONTEG1, por Cíntia Acayaba e Arthur Stabile
Mães de Maio fazem protesto durante lançamento do livro ‘Memorial dos Nossos Filhos Vivos’, na Faculdade de Direito da USP — Foto: Leticia Gomes/Arquivo Pessoal

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu nesta quarta-feira (10), por unanimidade, federalizar as investigações sobre os “crimes de maio” de 2006 no Parque Bristol, na capital paulista. O tribunal reconheceu as falhas na investigação feita pelos órgãos públicos estaduais de São Paulo.

Em 14 de maio de 2006, cinco jovens foram atacados por um grupo de homens encapuzados. Três morreram na hora. Um dos sobreviventes foi morto seis meses depois. O caso foi arquivado pelo Ministério Público de São Paulo pela ausência de provas.

Agora, é determinado um ministro relator e o estado de São Paulo é chamado para se manifestar. A investigação passa então para a PF e o caso vai para a Justiça Federal.

Como o g1 revelou, a solicitação de federalização foi feita em 2016 pelo então procurador-geral da república Rodrigo Janot ao STJ, atendendo a pedido de 2009 da Conectas e familiares das cinco vítimas.

Na época, a PGR declarou que a apuração da Polícia Civil e do Ministério Público de São Paulo foi meramente “formal, protocolar, ignorando a busca da verdade e das conexões entre crimes quase simultâneos e extremamente similares”.

Em seu despacho, Janot diz que “mostra-se evidente que o arquivamento em si da investigação configura violação do dever estatal de adequada e eficiente investigação, visto que a apuração pode ser acoimada [acusada] de insuficiente, por sua fragilidade, por não ter considerado o contexto em que produzidos os fatos, por não ter ouvido os policiais militares em atuação na região, por não ter se preocupado com a oitiva de testemunhas em linha de investigação razoável”.

Ainda segundo a procuradoria, esta “inércia das instâncias e autoridades estaduais” impossibilitou a responsabilização dos autores, “sendo inafastável a reabertura das investigações, dessa vez feita por parte da Polícia Federal”.

Em 2016, ao g1 a Secretaria da Segurança Pública do governo de São Paulo (SSP) esclareceu, por meio de nota enviada após a decisão da PGR, que a investigação das mortes ocorridas em maio de 2006 foi feita corretamente, com apuração final pelo Ministério Público de São Paulo e Poder Judiciário. “Não há como reabrir o caso sem novas provas, como determina o artigo 18 do CPP (Código de Processo Penal)”.

Os irmãos Edivaldo, 24, e Eduardo Barbosa de Andrade, 23, conversavam em frente de casa com os amigos Israel Alves de Souza, 25, Fábio de Lima Andrade, 24, e Fernando Elza, 21, quando foram alvejados por um grupo de pessoas encapuzadas. Socorridos por vizinhos, três deles morreram no local. Um dos sobreviventes foi assassinado seis meses depois a poucos metros de onde havia ocorrido a chacina. Até hoje, nenhum dos crimes foi esclarecido.

A SSP diz que “não houve inércia das autoridades estaduais” e “tem certeza que o STJ irá constatar a seriedade com que foi realizada a investigação, que foi acompanhada pelo Ministério Público e relatada à Justiça. Todas as ocorrências de morte foram apuradas, à época, com rigor, assim como as denúncias de eventuais homicídios que poderiam ter policiais como autores.” De acordo com o órgão, foram relatados à Justiça 51 inquéritos policias.

O Ministério Público de São Paulo disse em nota, em 2016, que vai se manifestar ao STJ contra a federalização da investigação dos inquéritos policiais em questão. “Os requerimentos de arquivamento dos dois inquéritos policiais, ambos homologados pelo Poder Judiciário, foram feitos diante da conclusão de que, após as diligências realizadas, não foi possível apurar a autoria delitiva”.

Envio para Justiça Federal

A ONG Conectas Direitos Humanos entrou em 2009 com um pedido junto à PGR para a federalização do caso, atribuindo as mortes a grupos de extermínio formados por policiais que teriam praticado crimes em retaliação aos ataques sofridos por agentes públicos no início da onda de violência. Outro pedido foi feito pela Defensoria Pública em 2010 por assassinatos de jovens em Santos.

A federalização, juridicamente conhecida como incidente de deslocamento de competência, é um mecanismo utilizado quando o estado onde ocorreram os fatos apresenta falhas na investigação ou quando é parte do processo.

O instrumento é previsto no artigo 109, parágrafo 5º, da Constituição Federal com base em emenda constitucional publicada em 2004: “Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.”

Até 2016. quatro crimes haviam sido federalizados, entre eles o assassinato da ativista Dorothy Stang, no Pará, e das ações de grupos de extermínio em Goiás.

Débora Silva segura a foto do filho Edson Santos, assassinado em 15 de maio de 2006 no litoral paulista — Foto: Cíntia Acayaba/g1

Internacionalização

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), decidiu julgar o estado brasileiro por suspeita de violação aos direitos humanos e omissão na investigação dos “crimes de maio” de 2006, como ficou conhecida a retaliação aos ataques contra a polícia que resultou na morte de civis no estado de São Paulo.

A Ouvidoria da Polícia diz que 493 pessoas morreram na onda de ataques, mas até hoje não há um número oficial de vítimas, que pode variar de 264 a 600.

Mães de vítimas de ataques em Santos entraram com pedido na Procuradoria Geral da República (PGR) da pela morte de 9 jovens por supostos grupos de extermínio. Diante da demora no pedido de federalização, a Defensoria Pública encaminhou a denúncia à OEA em 2015.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sempre afirmou que as mortes foram investigadas corretamente e que “não há como reabrir o caso sem novas provas”.

Na decisão, a Comissão Interamericana fala sobre o fato de o estado não ter solucionado os assassinatos.

“Os elementos trazidos pelas partes indicam que, mais de 15 anos após as mortes, os crimes permanecem sem solução. Sem prejulgar o mérito, há indícios suficientes de que esse transcurso de tempo não encontra justificativa fática ou jurídica. Neste sentido, são ilustrativos tanto os elementos trazidos pela parte peticionária relacionados aos limites das investigações policiais realizadas, quanto à profusão de medidas informadas pelo Estado sem que tivesse sido possível, após tanto tempo, esgotar as linhas investigativas e realizar as diligências necessárias para solucionar os crimes em comento”, diz a decisão.

A comissão diz ainda que quer analisar se houve ou não o uso abusivo da força pública.

“Cumpre à Comissão realizar uma análise prima facie com o único objetivo de determinar se os fatos expostos caracterizam uma possível violação de direitos humanos, bem como se os fatos não resultam manifestamente infundados ou improcedentes. No presente assunto, os fatos expostos cumprem esse requisito. As considerações do Estado sobre se houve uso racional da força pública ou sobre a falta de elementos suficientes para atribuir às mortes a agentes estatais poderão ser examinadas na etapa de mérito e não tem o condão de tornar a petição inadmissível”, diz o documento.

Em resposta à OEA, o governo brasileiro disse que o estado de São Paulo vivenciou uma “crise de segurança pública marcada por rebeliões e ameaças de ataques generalizados a instituições, locais e serviços públicos” feitas por membros da organização criminosa PCC, e que essa crise “conduziu a uma atuação mais efetiva e contundente de órgãos policiais em prol da restauração da segurança e ordem pública”, com a adoção de “medidas de restauração da segurança pública, da ordem pública, bem como da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

O estado brasileiro destacou à comissão que o uso da força pública e o uso racional da força “não contrariam a Convenção de per se, desde que os agentes estatais não ajam de maneira arbitrária”.

Para a defensora pública do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH) Fernanda Balera, “os crimes de maio são emblemáticos da impunidade que caracteriza a violência policial”.

“O caso apresentado pela Defensoria trata da morte de nove vítimas primárias, uma delas uma mulher grávida, que foram sumariamente executadas e cujas mortes não foram investigadas. A decisão da OEA é um marco importante e fruto da luta por verdade e justiça das mães que já dura mais de 15 anos”, disse.

Débora Silva Santos, líder do movimento Mães de Maio, afirmou que se sente esperançosa com a internacionalização do caso.

“Me sinto esperançosa, já que a Justiça brasileira é racista e tem dois pesos e duas medidas. Houve uma corrupção dos agentes no sistema prisional. Os assassinos dos nossos filhos e os mandantes foram blindados pelo Ministério Público. Pelo corporativismo que exite dentro da instituição”, afirmou.

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