Sueli Carneiro: ‘Não importa o tempo que será necessário, faremos Palmares de novo’

Referência do movimento negro e do pensamento feminista brasileiro, Sueli Carneiro é homenageada em exposição no Itaú Cultural, em São Paulo

FONTEPor Leda Antunes, do O Globo
Sueli Carneiro, 71 anos (Foto: Andre Seiti/Divulgação)

Apesar de não ser muito afeita a entrevistas, as palavras são a principal ferramenta de trabalho de Sueli Carneiro. Há mais de três décadas, a filósofa e ativista escreve incansavelmente e, por meio de suas palavras, contundentes como espada afiada, luta pela construção de um país antirracista, mais justo, igual e solidário. Aos 71 anos, completados em junho de 2021, ela é uma das intelectuais negras mais atuantes no país e um dos nomes que abriram os caminhos do feminismo negro brasileiro.

Da menina nascida no bairro da Lapa, zona oeste da capital paulista, à doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), sua trajetória foi recentemente recontada na biografia “Continuo preta” (Ed. Companhia das Letras), escrita pela jornalista Bianca Santana, e agora é celebrada na Ocupação Sueli Carneiro, inaugurada no sábado (28), no Itaú Cultural, em São Paulo. A exposição segue em cartaz até 31 de outubro.

— A Sueli faz parte de uma geração que ajudou a construir o movimento de mulheres negras e o movimento negro como um todo. Então, contar a história dela é contar uma historia coletiva e poder celebrá-la em vida é algo muito bom — afirma Santana, que também é cocuradora da exposição.

A geração a qual a biógrafa se refere é aquela que, em 1978, fundou o Movimento Negro Unificado (MNU), visando “defender a comunidade afro-brasileira contra a secular exploração racial e humana”. Inserida neste contexto, Sueli foi uma das primeiras a argumentar que era preciso incluir no debate os recortes de gênero, raça e classe.

Em 1985, ela lançou seu primeiro livro, “Mulher negra: política governamental e a mulher”, escrito com Thereza Santos e Albertina de Oliveira Costa, seguido de “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil”. Mais tarde, em 1988, fundou o Instituto da Mulher Negra, o Geledés, onde passou a colocar em prática sua visão como socióloga e militante.

Com mais de 140 itens, entre fotografias, documentos, vídeos, artigos e livros, a Ocupação Sueli Carneiro celebra a construção da obra e da militância da ativista, sua ancestralidade, suas memórias pessoais, a paixão pelo futebol, a força e a simbologia de sua religiosidade e sua jornada de formuladora de debates fundamentais sobre o país.

Nesta rara entrevista, ela reflete sobre como é ver sua história contada em livro e exposição e o que mais a emociona ao olhar para trás. Sueli também fala sobre a atuação da Fundação Cultural Palmares sob o governo Bolsonaro: “Não importa o tempo que será necessário, faremos Palmares de novo”.

A senhora não costuma dar muitas entrevistas. Mas falou por muitas horas com sua biógrafa, a jornalista Bianca Santana. Como foi esse processo de ter sua história contada em um livro? 

Foi uma experiência inusitada. Eu nunca imaginei que pudesse ser biografada, nunca considerei que a minha história tivesse conteúdo suficiente para uma biografia e muitas vezes disse isso a Bianca Santana, tentando dissuadi-la. Graças a persistência dela, acabou sendo um exercício gratificante de aproximação e troca de duas mulheres negras de gerações diferentes. Pude compartilhar histórias, estórias e confidências que a diferença geracional parecia não autorizar.

Isso exigiu muita paciência de Bianca, porque eu sou pessoa de difícil trato. Apesar de mim mesma, conquistei uma jovem e querida amiga que, através de minha história pessoal, com seu talento jornalístico e sua dedicação à pesquisa, soube destacar o que me parece mais relevante: situar minha história no contexto mais amplo das lutas nas quais se empenham homens e mulheres negras nesse país, por justiça, por igualdade, por respeito a sua dignidade humana, desde sempre.

Sueli Carneiro aos 24 anos (Foto: Acervo Pessoal Sueli Carneiro)

E agora, como é ver sua trajetória transformada em uma exposição?

Vejo minha biografia e essa exposição do Itaú Cultural como um case que sinaliza para tantas histórias que precisam ser contadas, para tantas e tantos personagens que precisam ser resgatados, reconhecidos, visibilizados na sociedade brasileira, pessoas negras que constroem cotidianamente a resistência negra em busca de uma sociedade justa, igualitária e solidária. Personagens que, com a sua luta, sinalizam sempre para a possibilidade de outro projeto de país, que seja de fato racialmente democrático e erradique todas as suas práticas violentas fundantes.

A violência racial que sofremos nos impulsiona a sermos agentes civilizatórios desse país, na medida em que incansavelmente advogamos por valores e princípios radicalmente democráticos que possam não apenas nos libertar da opressão racial, mas também redimir e reconciliar esse país com a sua própria história.

A exposição traz uma simbólica árvore no centro, e ao redor dela se revela sua história. O que essa árvore representa, para você? E como ela conversa com a sua história?

Quando eu vi a copa daquela árvore, adornada por conchas brancas muito delicadas, me deu a impressão de estar sob um alá de Oxalá estilizado. Senti que aquela exposição estaria também sob os auspícios de Oxalá, o grande orixá, secundado por seus diligentes filhos que nela nos introduzem: Exu, abrindo alas para seu irmão Ogun, que governa a minha vida e meu destino e orienta os caminhos da exposição, em harmonia com Oxumaré, que se eleva pela árvore sagrada embelezando a exposição com as cores de seu arco-íris.

As milhares de conchas que adornam a copa da árvore simbolizam ainda, para mim, a saga coletiva de mulheres e homens negros num país que usa a cor da pele das pessoas para produzir privilégios e exclusões em benefício de um determinado grupo racial minoritário. Aquelas conchas são os pirilampos de nossa ancestralidade iluminando o devir promissor que tanto almejamos e pelo qual lutamos.

Árvore central da Ocupação Sueli Carneiro, no Itaú Cultural, em São Paulo (Foto: Imagem retirada do site O Globo)

Nas palavras de Bianca, você é a mulher que enegreceu o feminismo brasileiro. Concorda com esse título?

Essa expressão advém de um ensaio intitulado “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”, com o qual procurei assinalar a identidade branca e ocidental da formulação feminista clássica e revelar a sua insuficiência teórica e prática para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais.

Essa crítica nos permitiu construir uma agenda política específica que combate, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; que afirma e dá visibilidade a uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre. Com isso delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva introduzida pelas negras tem na luta antirracista e na luta antisexista no Brasil.

Por que é preciso enegrecer o feminismo?

Concretamente, enegrecer o feminismo tem significado demarcar e instituir em sua agenda o peso que a questão racial tem na configuração dos temas fundamentais do ideário feminista, como o da saúde da mulher e de seus direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, que serão ampliados e ressignificados com evidências sobre a prevalência de mortes previníveis e evitáveis entre as mulheres negras decorrentes de doenças étnicas/raciais ou de doenças com maior incidência sobre a população negra.

Também tornamos visíveis as violação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres negras derivados de desatenção ao parto, de esterilizações precoces, entre outras questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde da mulher. Acreditamos que o feminismo resultante da incorporação heurística das múltiplas injunções que o racismo e o sexismo impõem às mulheres é o único capaz de emancipar todas as mulheres no Brasil.

Conceição Evaristo, Sueli Carneio e Luiza Barros em foto de 2015 (Foto: Acervo Pessoal Sueli Carneiro)

O seu trabalho faz referência ao legado de mulheres negras que vieram antes de você e influencia uma nova geração que veio depois. Qual é a importância deste diálogo entre passado, presente e futuro?

Eu já disse incontáveis vezes que descobri o que eu queria ser quando crescer ao assistir pela primeira vez uma conferência de Lélia Gonzalez. Ela foi altamente inspiradora para o meu ativismo político e, em agradecimento, eu me comprometi comigo mesma em honrar o seu legado. Espero estar cumprindo essa promessa. Mas isso, além de uma questão pessoal, é parte de uma tradição negro-africana, esse permanente dialogo entre presente, passado e futuro que experimentamos em nossas manifestações culturais.

Essa coexistência de diferentes temporalidades, esse trânsito entre o visível e invisível, são componentes da cosmovisão de matriz africana, dinâmicas que importantes pensadores e pensadoras negros contemporâneas nos estão desvelando por meio de diferentes abordagens da noção de transtemporalidade e sua relação com as ancestralidades, como venho aprendendo com estudiosos como Tiganá Santana e Leda Maria Martins e poeticamente retratado no lindo poema de Conceição Evaristo, Vozes-mulheres

“A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade.”

CONCEIÇÃO EVARISTO
Trecho do poema ‘Vozes-mulheres’, citado por Sueli Carneiro

Quando olha a sua vida em retrospecto o que mais lhe emociona?

O que mais me toca e emociona é o atual protagonismo das jovens negras da atualidade, que considero o fato mais auspicioso a comemorar; um protagonismo vibrante, plural, afirmativo, corajoso, são jovens negras dando continuidade as lutas de várias gerações que as antecederam e que eu estou tendo o privilégio de assistir assumindo a liderança de nossa luta por emancipação. Quando converso com elas gosto de contar que quando nós, as velhas feministas, nos reuníamos, costumávamos nos perguntar “onde está a nova geração?”, “quem assumirá o bastão?”, pois olhávamos ao redor e o que víamos era nós mesmas, cada vez mais cansadas.

Agora quando lhes pergunto onde estavam, elas me respondem: “estávamos crescendo, Sueli, mas prestando muita atenção em vocês!” Então hoje, com alegria, eu digo: saudações a essas novas combatentes , que tanto honram a nossa história, que são continuidade e superação dos esforços de tantas gerações anteriores de mulheres negras. Saudações e gratidão por nos assegurar que a luta continua e está em boas mãos.

A Fundação Palmares tem apagado biografias de personalidades negras. Como vê a atuação da fundação no atual governo?

A Fundação Cultural Palmares foi criada em 1988, no bojo das lutas por democratização da sociedade brasileira que desembocaram na Constituição Cidadã. Ela faz parte das conquistas dos movimentos negros e movimentos de mulheres que criminalizaram o racismo,  destituíram o pátrio poder, legitimaram inciativas de ações afirmativas para grupos historicamente discriminados e ofertaram reconhecimento das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Conquistas que esse governo se esforça em destruir. A minha resposta a isso é a que temos dado em todas as conjunturas adversas: não importa o tempo que será necessário, faremos Palmares de novo.

-+=
Sair da versão mobile