Sueli Carneiro ocupa o Itaú Cultural e nos convoca a agir

FONTEPor Camilo Vannuchi, do UOL
Imagem: André Seiti/Acervo Itaú Cultural

Percorro a Ocupação Sueli Carneiro, ainda em fase de finalização, como quem explora pirâmides. Em vez de hieróglifos, decifro as pegadas de uma luta ancestral, que reverbera em mim como a denúncia de um crime ocultado, uma rebelião abafada, um testemunho de coragem e resistência que a narrativa oficial buscou apagar.

Tem sido assim com o feminismo negro, suas memórias, seus símbolos, sua epistemologia, seu legado.

Para um brasileiro branco e privilegiado, que cresceu numa escola de elite, em tudo carente de diversidade, e se graduou numa universidade pública de São Paulo, numa época anterior às cotas, é imperativo palmilhar a história que não me foi contada, banhar-me na literatura que não me foi apresentada, vasculhar uma memorabilia destinada ao subsolo. Numa época em que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, conforme expressou a norte-americana Angela Davis, cada livro é um alumbramento, cada exposição, uma epifania. A Ocupação Sueli Carneiro, a partir deste sábado (28) no Itaú Cultural, é um grão de mostarda nesse mosaico imprescindível.

Não estou sozinho no meu desconforto e no meu desconhecimento. Antes estivesse. Melhor seria se fosse eu o branco ignaro, boçal e inculto, singular em minha bolha de privilégio, último subproduto de uma educação racista numa sociedade rica em diversidade e em empatia. Só que não. Aqui, a invisibilidade é a regra. Ainda é. E é a percepção dessa invisibilidade que nos faz absorver relatos e histórias como quem vasculha sítios arqueológicos e tateia o desconhecido. Para que o não dito seja revelado.

Dia desses, um amigo, advogado brilhante, revelou que só foi conhecer a história do abolicionista Luís Gama depois se se formar em Direito na USP. Nada foi lido, debatido ou estudado sobre Gama nos cinco anos de bacharelado. A história dos documentos da escravidão, queimados em 1890 por ordem do então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, é outro episódio apagado, bem menos conhecido do que deveria.

A Revolta dos Malês, as experiências de outros quilombos, por que sabemos tão pouco sobre isso? Nilo Peçanha, presidente da República, era negro? E Carlos Marighella? Luíza Mahin e Dandara existiram de fato?

Quantos autores negros estão citados nas referências bibliográficas da minha dissertação de mestrado e da minha tese de doutorado? E quantas autoras? Vamos fazer essa contagem em todas as teses defendidas nos últimos dez anos na USP, na Unesp ou na Unicamp?

O racismo é estrutural, como repete Silvio Almeida, é recreativo, como nos mostra Adilson Moreira, é violento e abusivo, como aprendi com Juliana Borges e Tamires Sampaio, é social, cultural e estético. Permeia as relações de afeto, de comércio e a produção acadêmica. Costuma ser muito mais segregador e violento com as mulheres, sobre as quais incide uma dupla discriminação. “A mulher negra é a síntese de duas opressões, de duas contradições essenciais: a opressão de gênero e a de raça”, escreveu Sueli Carneiro. “Se a questão da mulher avança, o racismo vem e barra as negras. Se o racismo é burlado, geralmente quem se beneficia é o homem negro. Ser mulher negra é experimentar essa condição de asfixia social”.

Filósofa, ativista, fundadora e atual diretora da organização social Geledés – Instituto da Mulher Negra, pesquisadora rigorosa e articulista prolífica, Sueli Carneiro, 71 anos, foi uma das autoras que me pegou pelas mãos e me ensinou os primeiros rudimentos dessa alfabetização tardia. Rosane Borges, Bianca Santana, Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez, Carolina Maria de Jesus, Djamila Ribeiro. Alegria encontrar muitas dessas mulheres nas fotografias, nos painéis e nos depoimentos em vídeo exibidos na Ocupação. É só o começo.

A ocupação anterior no Itaú Cultural, desmontada em julho, fora dedicada à compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga e destacou sua negritude – ainda hoje invisível para muitos – bem como seu envolvimento na campanha pela abolição. Antes dela, o espaço havia homenageado apenas duas mulheres negras num universo de 50 edições: a escritora Conceição Evaristo (2017) e a sambista Dona Ivone Lara (2015). O antirracismo é necessariamente construção coletiva e, também, simbólica, mais lenta do que deveria, e cada iniciativa como esta deve ser celebrada. Trata-se, nestes casos, de uma ocupação na acepção política e emancipatória do termo: ocupar todos os espaços. Ocupar, resistir e produzir.

A Ocupação Sueli Carneiro tem curadoria do Núcleo de Comunicação e Relacionamento e da Enciclopédia Itaú Cultural, e da jornalista e escritora Bianca Santana, autora da biografia Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro. O ambiente expositivo foi concebido numa disposição circular, com uma árvore branca, concebida com escamas de peixe no lugar das folhas, fincada bem no centro, conferindo à sala certo aspecto de oca. O babalorixá Baba Diba de Iyemonja assina a consultoria religiosa, fundamental para orientar a presença de elementos constitutivos da exposição, como um instrumento de Ogum e plantas que preenchem a entrada do espaço cênico – Sueli é ekedi no candomblé, uma espécie de zeladora, cuidadora ou camareira dos orixás. Isabel Xavier assina o projeto expográfico, com assistência de Danilo Arantes. A mostra fica em cartaz até 31 de outubro.

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