Supermercados que golpeiam e matam: sobre Januários, Elisângelas e Joões

FONTEPor Eliane Silva, enviado para o Portal Geledés
(Foto: Geledés)

Esta narrativa  foi gerada no início deste ano de 2020, e de lá pra cá, trazendo ainda às nossas lembranças a brutalidade extrema, racista, contra Januário, homem negro acusado de “roubar o próprio carro” no supermercado Carrefour, na cidade de São Paulo, muitas situações de racismo em supermercados vêm ocorrendo com pessoas negras nos quatro cantos deste país. 

O mesmo Brasil que, pela boca de uma mídia “global” diz que “Nós não somos racistas”, cujo quiproquó escorre na língua venenosa de algumas lideranças políticas. Há Joões negros que morrem tanto asfixiado brutalmente numa confusão resolvível numa rede de supermercados (Carrefour), quanto num mercado menor. 

Há também Marias que são perseguidas e golpeadas pelas insensibilidades de funcionários, que também não deixa de ser racista, advindas de situações preconceituosas no estacionamento ou nos corredores de pequenos supermercados. Cada um desses episódios são mortais, seja para o corpo, a alma, o psicológico da pessoa negra que passa por isso.

 Era para ser um final de semana desses em que comumente as pessoas saem pra fazer compras, passeios, fugir da rotina, seja sozinha, com filhos ou com  companheiros/as. Incrível pensar que uma simples saída de casa pode ter resultados bem espantosos, dependendo da cor da pele que se habita. Já parou pra pensar sobre isso? Trato aqui, nestas linhas, de casos cotidianos de privilégios de alguns e rechaçamentos público de outros, de abertura ou fechamento de portas,  portões, espaços públicos e privados.

Num  domingo desses, por exemplo, no quinto dia do ano de 2020, Elisângela, mulher negra, funcionária pública, acompanhada do filho de 3 anos, seguiu, de carro próprio, para um chá de bebê de uma amiga em Guarulhos, SP. Ela, que mora na grande SP, planejou participar daquele evento. Ao chegar nas intermediações  do espaço, resolveu estacionar o carro em um pátio de supermercado na cidade de Guarulhos, SP, região da Ponte Nova, visto que planejava comprar alguns mantimentos e seguir para o compromisso. Neste meio tempo, ao verificar que as horas já estavam avançadas, deixou o carro ali mesmo e seguiu, a pé, para o compromisso. 

Após algumas horas, Elisângela retorna ao local para fazer a compra e se depara com o portão do estacionamento fechado. Descobriu que o horário de fechamento do comércio era às 18h00, e não às 22h, como havia imaginado, porém, chegou às 18h02. Dialogou calmamente com o segurança do supermercado, explicou o ocorrido, inclusive que havia esquecido o celular e bolsa dentro do carro. Naquele dia, chuvoso, o funcionário, vendo a aflição da cliente em potencial e o filho desta, uma criança pequena, ambos na chuva, não arredou o pé. Disse que se a deixasse retirar o carro, seria despedido.

O fator mais intrigante foi que, no mesmo momento, um homem branco, sem camisa, e com o carro na mesma garagem, numa situação “semelhante”, entrou, cochichou no ouvido do funcionário, e retirou o automóvel sem ter qualquer conflito. Teve tempo, inclusive, de  ostentar seu poder “mágico” de ter o portão aberto a ele, oferecendo  uma carona para a moça desesperada que mal conseguia chegar perto do portão principal. Ela, negra, com o filho, sequer teve a chance de retirar os pertences do carro. Clientes e funcionários saiam do estabelecimento e caçoavam, riam dela e da criança, ambos estavam na chuva, implorando pelo carro que se encontrava do outro lado do portão – , e solicitava os objetos que estavam no interior daquele automóvel.

Você, leitor/a, consegue identificar aí alguma diferença entre os casos? Note que as normas de uso do estacionamento naquele supermercado valeram para a mulher negra, mas não para o sujeito caucasiano. Que país é este? Por qual motivo há diferenças nos tratamentos entre as  duas pessoas envolvidas? Um segurança que afaga um sujeito branco, recebendo suas solicitações, e deixa uma mulher, com criança pequena, à noite, num lugar ermo e na chuva, precisa dar uma explicação deste ato no mínimo racista! Precisa responder por isso. O supermercado precisa saber o que houve com aquela mulher. Precisa ser confrontado com os vários pedidos de socorro o que essa moça precisou encarar para conseguir voltar pra casa… sem o carro, sem o celular e sem dinheiro, visto que estes ficaram presos dentro do carro que ela não pode acessar. Cadê o respeito, o cuidado e a empatia, a preocupação com o outro, que inclusive alimentam estes supermercados com compras quase que semanalmente? 

São violências como essas que se somam e nos esmagam abaixo de cargas de estresses cada vez mais acentuadas. Valendo-se a máxima “Aos amigos, tudo! Aos inimigos, a lei”, o povo negro têm se  esbarrado no rigor das ‘leis’ até mesmo em simples ações, em que as chaves e os chicotes, muitas vezes colocados, sorrateiramente, nas mãos de funcionários muitas vezes já treinados para praticar torturas, se fecham sem dó nem piedade, numa autoflagelação, doentia, porém que conduz a desfechos que liquidam mentes e corpos de mulheres e homens negros, aqui e acolá. Violências estas que se iniciam numa perseguição doentia de cidadãs e cidadãos negros pelos corredores de supermercados, fechando-lhes as portas e golpeando-lhes na cabeça, literalmente. 

O sujeito negro não tem  chance de revide, mesmo que, como num ringue,  tivesse batido as mãos repetidamente no tatame para indicar o “basta, já estou imobilizado!”, mesmo que sinalize que não consegue mais respirar, mesmo que indique, para poder se desvencilhar de grandalhões aspirantes a assassinos fardados, que sim, “não sou dono deste carro utilitário, me deixem ir”, ou que uma mulher permaneça na chuva noturna, com seu filho pequeno, e busque outra alternativa para voltar para casa sem bolsas, documentos e afins. 

Então, focando em Januários, Elisângelas e Joões do mundo todo, precisamos que os responsáveis destas grandes corporações respondam por estas atitudes grotescas de seus funcionários, independente de serem de empresas de segurança terceirizada. Assumam seus erros e  parem de matar e humilhar os negros, pois somamos mais de 50% da população deste país, e nosso dinheiro não vai ser gasto com comércios que matam, perseguem e torturam  nosso povo. Ainda nos resta fôlego e reconexões com a negritude, mesmo diante de tantos genocídios, e enquanto tivermos ar, vamos com os punhos cerrados em busca da sobrevivência digna.

Situações assim não podem mais ficar impunes. Nós, descendentes de africanos, que sofremos agressões neste teor quase que diariamente, precisamos nos fortalecer e buscar os meios  para desmascarar cada situação que não nos deixa viver e avançar, devemos enfrentar cada ato que visa nos matar aos poucos. Não é tudo, mas é um dos caminhos. Na melhor das hipóteses, precisamos tomar para nós, que precisamos, com urgência, nos tornar empresárias/os desse setores  que hoje nos oprimem, a fim de erradicarmos as problematizações raciais que nos cercam. Cortar o mal pela raiz. Bater a onde dói. No bolso.

 

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Eliane da Silva

Doutoranda em Literatura Comparada 

Mestre em Filologia e Língua Portuguesa

Pesquisadora de assuntos voltados a gênero, raça e etnia

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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