Suspirar pela Democracia

Acima de tudo, precisaremos, como dizia Anísio Teixeira em 1947, fazer ‘da educação o serviço fundamental da República’

FONTEPor Ricardo Henriques, do O Globo
O economista Ricardo Henriques, do Instituto Unibanco (Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo)

“Falamos em Democracia, temos aspirações democráticas, sentimentos democráticos. Suspiramos pela Democracia, mas nunca lhe quisemos pagar o preço”. Esta frase poderia ter sido escrita hoje, na véspera da mais importante eleição desde a redemocratização, tal a precisão do diagnóstico sobre o que está em jogo no país. Mas é de 1947, e consta de um discurso de Anísio Teixeira (1900-1971) na Assembleia Constituinte Estadual da Bahia, num momento em que o Brasil havia acabado de sair de uma Ditadura.

Sendo o autor um dos maiores educadores brasileiros de todos os tempos, não é difícil imaginar qual seria, em sua visão, o preço que nunca quisemos pagar: “o preço da Democracia é a educação para todos, educação boa e bastante para todos, a mais difícil, repetimos, das educações: a educação que faz homens livres e virtuosos”.

Anísio foi profundamente influenciado pelo pensamento do filósofo e pedagogo norte-americano John Dewey (1859-1952), que enfatizava ser a educação universal não apenas um direito, mas condição necessária para a construção de uma democracia estável. Não por acaso, em seu discurso, Anísio citava outro educador dos Estados Unidos, Horace Mann (1796-1859), principal liderança do Common School Movement, que defendia a tese – revolucionária à época – de que todas as crianças deveriam estar matriculadas em escolas públicas e gratuitas.

Historiadores da educação enfatizam que não é coincidência o fato de o Common School Movement, do século XIX, ter acontecido no mesmo período em que ocorreram campanhas de ampliação do direito ao voto em democracias ocidentais.

A educação, chave essencial para um projeto de sociedade democrática, não é a única variável relevante em jogo hoje no Brasil. Nossa situação se insere em um movimento global caracterizado pela tentativa de erodir a ordem democrática através de um conjunto de práticas sistemáticas que incluem ataques ao jornalismo profissional e aos opositores do governo, incitação à violência, loteamento do Judiciário, descrédito e ameaças de fechamento do Parlamento.

À esquerda ou à direita, essa tem sido a estratégia de lideranças autoritárias que conquistam o poder por vias democráticas, mas o exercem de modo arbitrário e violento. É no segundo mandato, porém, que esses projetos autoritários ganham maior robustez, ao migrarem da retórica agressiva e antissistema para o efetivo desmonte das instituições basilares do funcionamento democrático, permitindo que autocratas se perpetuem no poder. Casos como Hungria, Turquia e Venezuela ilustram bem os perigos do flerte autoritário.

A experiência histórica nos diz que a ruptura democrática ocorria, em geral, por meio de um choque, como um clássico golpe de estado. Como enfatizado por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em “Como as democracias morrem”, de 2018, a subversão democrática tem se dado de forma distinta no século XXI.

Trata-se de um fenômeno lento e gradual, frequentemente subvertido por dentro, pelas mãos de líderes de tendência autoritária que, navegando através de instituições e poderes, terminam por erodir a democracia.

Nos últimos três anos e meio – para além dos ataques diretos aos sistemas de freios e contrapesos – o governo federal desmontou políticas públicas nas áreas de Meio Ambiente, Educação, Cultura, Ciência e Assistência Social, imprescindíveis para o bom funcionamento de nossa democracia. Recolocar o país na rota de aperfeiçoamento da democracia, portanto, exigirá de nós muito mais do que respeito às instituições e às regras do jogo eleitoral.

Aventuras populistas autoritárias em todo o mundo – vimos, nesta semana, o exemplo da Itália – se alimentam justamente do ressentimento e da frustração do eleitorado com sua qualidade de vida.

De novo, Anísio Teixeira alerta que, apesar de conhecermos as promessas e os frutos da democracia, este é “por excelência, um regime social e político difícil e de alto preço”. Assim, mesmo ao recompor a trajetória democrática a partir do resultado das urnas amanhã, certo é que teremos uma árdua tarefa pela frente.

Vamos precisar de muita disposição para o diálogo; de competência técnica e política para recolocar as políticas públicas na direção certa; e de visão estratégica para acelerar a velocidade das transformações estruturais, além de fortalecer

nossas instituições democráticas. Mas, acima de tudo, precisaremos, como dizia Anísio em 1947, fazer “da educação o serviço fundamental da República”. Ao vencedor, pois, a missão da educação – de qualidade e para todos.

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