“Tenho dó deles”, diz vigia espancado em supermercado sobre seus agressores

Um ano após ser espancado em um supermercado em Osasco, na Grande São Paulo, o vigilante Januário Alves de Santana disse em entrevista ao R7 ter pena dos seguranças que bateram nele. Os agressores desconfiaram que Santana tivesse roubado o próprio veículo, um Ecosport – veículo que estava sendo quitado em 72 parcelas de R$ 789 -, e o levaram para um quarto isolado, onde foi espancado por cerca de 25 minutos.

Nesta semana, a polícia realizou a reconstituição do crime para determinar a participação de cada suspeito. Os golpes, que chegaram a arrancar uma prótese dentária da vítima, deixaram sequelas psicológicas.

Para entidades de direitos humanos, a agressão é um caso de discriminação. Nascido na Bahia, Januário é negro e mora em um bairro pobre.

Ele foi indenizado em um acordo extrajudicial com a rede de supermercados Carrefour. Por força das cláusulas do contrato firmado, Januário não pode mais falar sobre o caso sob pena de perder parte do valor que ganhou – ele e o advogado que o representa, Dojival Vieira, se negam a revelar o valor.

– O Carrefour nada deve ao Januário e cumpriu seu papel exemplarmente. O acordo foi cível. O Estado precisa agora cumprir seu papel, aplicar a lei.

Eles se referem às agressões como “o episódio” ou “o acontecido”. Agora, Vieira e Santana querem criar uma organização de combate a casos de racismo, a Associação Nacional das Vítimas de Discriminação Racial. O lançamento deve ser em novembro próximo, mês em que se comemora o dia da Consciência Negra.

Santana falou com a reportagem do R7 acompanhado do advogado e da mulher, Maria dos Remédios Soares. Após as perguntas, ele escolhia bem as palavras antes de responder. No começo da conversa, Santana não olhava para o repórter e respondia mirando o advogado. Só ao final da conversa é que passou a falar sem desviar o olhar.

Acompanhe os principais trechos da entrevista:

R7 – Qual é o objetivo da associação? 
Januário Alves de Santana – É para evitar novos casos de agressão. Essa agressão que eu sofri, eu já vinha sofrendo. Se não fisicamente, moralmente. Eu já vinha sofrendo há muito tempo, desde 2001.

R7 – Por exemplo?
Santana
 – Um dos casos aconteceu dois anos antes do episódio. Eu tinha um Gol prata seminovo. Tinha jantado perto do meu trabalho, na USP. Ao retornar do almoço, eu tive que abrir o porta fusível. Eu mexo com eletrônica, criei um projeto para impedir que o carro fosse roubado, porque eu não tinha seguro. Quando eu ligo o carro, chegam dois seguranças de bicicleta. Me cercaram e disseram: ‘Você não vai poder sair’. Perguntei: ‘O que está acontecendo?’. Responderam: ‘Foi passado pela rede que está havendo um roubo de um carro e a descrição bate com o carro. E a descrição da pessoa que está na direção desse veículo é uma pessoa de cor, bate com você’. Só que nesse caso eu dei sorte, porque chegou um guarda que me conhecia. Eu consertava televisão para ele. Outra vez me pararam porque acharam que eu ia tocar fogo na USP. Eu estava levando gasolina para o meu carro em um galão de dois litros. Só isso. As agressões vinham crescendo até que, antes do episódio, eu tinha me prometido que, na próxima vez que acontecesse, eu iria denunciar.

R7 – Você sabe consertar televisão?
Santana – Sou técnico em eletrônica. Mas não trabalho mais. Logo após o acontecido, fiquei com aquela coisa que chamam de pós-traumático, sensação de que está sendo perseguido o tempo todo. Demorei para voltar a entrar até em mercado pequeno. Quer dizer, a mente fica tão a milhão… Aquela concentração da mente que precisa na área da eletrônica, você perde. Olha que eu era uma pessoa bastante concentrada.

R7 – Como aprendeu?
Santana – Fiz um curso por correspondência. Trabalhava também em uma loja em Osasco que fazia consertos.

R7 – Porque veio para São Paulo?
Santana – Eu vim de Salvador por falta de emprego. Vim uma vez em 1993. Eu era muito novo na época, mas me senti muito só. No meio de tanta gente, eu me sentia só. Cheguei num frio terrível, em agosto. Voltei para Salvador em 15 dias. Aí eu voltei para São Paulo em 1998 em definitivo. Gostei e fiquei. São Paulo é muito boa. Você confia na segurança pública. Não é só em São Paulo que acontecem esses casos como o meu. Fora de São Paulo é ainda pior. Tive um irmão, o caçula da família, que foi assassinado. Uma pessoa viu e disse que foi a polícia. Só que o corpo desapareceu. Não teve sepultamento. Esse irmão meu está oficialmente como desaparecido.

R7 – O que você quer que aconteça com os seus agressores?
Santana – Tenho dó dessas pessoas. Meu coração é mole, não aguenta. O que eles fizeram não é mais comigo, é com Deus, com a lei.
Maria dos Remédios Soares – [interrompe Santana] O sentimento do Januário é assim mesmo. Ele não guarda ódio.
Santana – Eles são uma vítima do próprio sistema, da sociedade. Eu não consigo ter ódio deles. Gostaria é que eles chegassem e reconhecessem que erraram. Queria que as coisas se consertassem, queria que houvesse o reconhecimento [do erro].

R7 – Policiais militares estão sendo investigados por não terem lhe prestado atendimento depois de terem visto o senhor ferido no estacionamento do Carrefour. O senhor teve algum problema com a PM depois disso?
Santana – Eles mudaram muito. Nem em blitz me param. Quando me reconhecem, eles dão uma segurada para deixar eu passar. Não só os policiais. Hoje eu entro no mercado, as pessoas tomam um cuidado para me tratar bem. É tão legal ser bem tratado.

R7 – Isso te motiva a fazer essa associação?
Santana
 – O Samuel [filho de Januário de seis anos] vai crescer, vai casar, vai vir os netos… Eles não podem passar pelo que eu passei. Dor maior é viver tendo que mentir. Mas eu decidi falar a verdade, mesmo correndo risco. Se eles tentarem me calar, eles que me calem. Depois das agressões que recebi, muita gente me dizia: ‘Ah, você está vivo, e isso o que importa. Melhor não se incomodar’.

R7 – E o Ecosport, o senhor permanece com ela?
Santana – Sigo com ela. Faltam umas 30 prestações. Na verdade, antes de acontecer o episódio do mercado, eu já tinha os meus receios. Tipo assim, eu lembro que duas vezes na entrada da empresa, vi o carro da polícia e esperei eles passarem, para evitar problemas.

Fonte: R7

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