Tereza Cárdenas, escritora: ‘No princípio, o universo era todo branco’

Vencedora do Casa de las Américas por ‘Cartas para minha mãe’, festejada autora cubana esteve pela primeira vez no Rio para encontrar estudantes

Por Arnaldo Bloch Do O Globo

Conte algo que não sei.

No princípio, o universo era todo branco. Até o dia em que que alguém o puxou por uma ponta e o virou, como uma página. Foi o que descobri em meus novos escritos. São contos do início dos tempos, nos quais volto para além da minha ancestralidade e recrio o mundo, reviro os mitos africanos e os demais.

Mas, antes, você teve que chegar à ancestralidade, explorada em “Cachorro velho” .

Fomos arrancados da África, mesclados, não temos árvore genealógica. Leio muita história colonial atrás de pequenas coisas, pratos que comiam, o que faziam à noite quando o amo permitia. Mas o importante, mesmo, vem de uma força que não está na pesquisa nem no que ouvi de minha mãe. É algo sensorial, até espiritual, ditado pelo coração, através dos símbolos que recebemos e que nele palpitam.

Como esse coração se aproximou da escrita?

Eu era uma criança calada, que lia e fazia teatro para me expressar. Mas algo nos livros me intrigava: não havia, nas histórias infantis, personagens parecidos comigo. Não havia meninas negras. As famílias eram felizes e brancas, sem problemas. Eu queria um livro no qual eu aparecesse.

E esse livro acabou sendo o seu primeiro, em 1997.

Sim, em “Cartas para minha mãe” a narradora é uma menina negra com a particularidade de não ter um nome e que virou uma representação para meninas e meninos, e adultos, brancos, negros, ruivos. O livro tem seguidores, foi premiado e até hoje recebo e-mails de crianças do mundo inteiro.

E o mundo? A partir de que momento você o conheceu?

Primeiro através dos livros mesmo. Eles eram as portas para lugares muito diferentes, Londres, Nova York, Pequim. Quando eu os fechava, sentia um grande estranhamento naquele quartinho pobre em que morava. Depois, quando comecei a viajar, vi que a realidade sempre supera a ficção: a primeira viagem foi à África do Sul a dez anos do fim do apartheid, quando vi o cativeiro negro às vistas de pessoas livres.

Você conheceu muitos países da América Latina, mas no Brasil é a primeira vez. Que tal?

É de uma grande beleza. Mas há algo que me entristece: assim como vocês são belos, carinhosos, apaixonados, de repente acontece algo, há um disparo e uma grande violência entre irmãos. Em Cuba carecemos de coisas materiais, mas isso não existe lá.

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Você também foi bailarina.

Quando eu tinha 20 anos gostava da dançar e era alta, de corpo delgado. Em bailes e cabarés era requisitada para encenações. Depois participei de um grupo folclórico dedicado a expressões africanas. Nesse grupo eu bailava para Oxum. Hoje só danço em casa, com meus filhos, ou em festas. Como todos os cubanos e cubanas, aliás.

Que paralelo você traça entre a dança e a escrita?

Na dança se é feliz, e na literatura se sofre espiritualmente e emocionalmente. Por isso ainda faço narrações orais, usando a voz, os gestos e até alguma dança, para readquirir essa energia empregada na escrita. Mas é a escrita que me sustenta e que me recompensa.

A escravidão persiste?

O pior tipo de escravidão, hoje, dispensa algemas e cativeiros: é a que impomos a nós mesmos. Eu hoje sou livre em meu país, e vivo do que escrevo.

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