Timbalada saúda a ancestralidade viva e celebra três décadas de axé

Ex-cantores deixaram legado para o grupo, que segue com nova formação. Antigos ou atuais, todos são unânimes em dizer que a Timbalada é uma escola, regida pela grandeza e inteligência de Carlinhos Brown.

FONTEG1, por Itana Alencar e Valma Silva
Carlinhos Bronw em 1991, no bairro do Candeal, com a recém-criada Timbalada — Foto: Arquivo pessoal

“Meu coração palpita sempre, quando sempre penso em você”. A declaração de amor da música “Regando-te”, da Timbalada, poderia ser feita, tranquilamente, de um fã para a própria banda. Com mais de 30 anos em atuação, um dos mais importantes grupos culturais do país atravessa gerações, arrebatando um público apaixonado. Celebrando as raízes africanas, os timbaleiros chegam ao carnaval mais esperado de todos os tempos com uma missão: saudar quem veio antes.

E as vozes anteriores são memoráveis. Nesta época, os cantores Ninha, Patrícia e Xexéu fizeram história e deixaram um legado para o grupo, do qual são unanimidades em dizer: a Timbalada é uma escola, regida pela grandeza e inteligência de Carlinhos Brown.

Ao lado de Fia Luna, Alexandre Guedes, Augusto Conceição e Mestre Pintado do Bongô – o mentor de Carlinhos Brown no início da carreira – eles foram os primeiros a dar cor e cara àquela que criou a batida mais inconfundível dos timbales.

“A Timbalada vai ser sempre eterna, porque além de ser um projeto onde Brown conseguiu formar 15 mil percussionistas, tivemos a oportunidade de formar vários cantores. Cada um contribuiu e contribui com o seu talento, dentro do seu formato de cantar”, avaliou Xexéu. Brown complementou: “O princípio da Timbalada é a educação, é a formação de profissionais. E o Candeal é minha sala de aula”.

Buja Ferreira, Carlinhos Brown e Denny Denan chegam para ensaio da Timbalada, em Salvador, em dezembro de 2022 — Foto: Max Haack/Ag Haack

Atualmente, Denny Denan e Buja Ferreira são os vocalistas, mas pela Timbalada já passaram Juju Gomes, Akira Takakura, Rafa Chagas, Milane Hora, Amanda Santiago e Paula Sanffer – as duas últimas juntas com Patrícia, formam o trio Timbaladies, também criado por Carlinhos Brown, que é cantor, compositor, multi instrumentista, arranjador, produtor musical e faz tudo o que pode ser feito no meio fonográfico – inclusive, descobrir novas potências.

“Acredito muito que por aqui ainda vão passar milhões de talentos, porque a Timbalada foi feita para isso, para revelar. E Brown tem essa especialidade. Com essa luz que ele tanto brilha, ele nos ajuda a também brilhar”, disse Xexéu.

Xexéu — Foto: TV Bahia

Brown recebe sempre os elogios devolvendo com outros elogios aos “pupilos”. Para ele, sem o talento de quem fez e faz a Timbalada, a dedicação depositada para construir um grande trabalho não seria de grande valia.

“A grande verdade é que eles são talentosos e a Timbalada, como um grupo de estudo, busca com que eles desenvolvam isso e tornem-se maiores. Então é um tempo, é um investimento pessoal. Eu sou o maior investidor da Timbalada. Investi nesses artistas e não me arrependo, porque isso faz parte de um legado”, ponderou o artista conhecido como “cacique do Candeal”, em referência ao bairro da capital baiana onde ele e a banda nasceram.

“A Timbalada é um legado de construção, porque nós construímos uma obra importante para a Bahia e para a Música Popular Brasileira”, afirmou.

Carlinhos Brown no Candeal, bairro onde nasceu, em Salvador — Foto: Arquivo pessoal

A revolução da Timbalada extrapolou o campo musical e invadiu o terreno social. O Candeal, onde tudo começou, era uma das comunidades mais pobres de Salvador e se tornou um berço da música e da cultura. O bairro abriga a associação Pracatum, que Bronw criou não somente para educar centenas de jovens, mas também para fomentar a indústria fonográfica, formando profissionais de diferentes setores do mercado do entretenimento.

“Eu sempre deixo muito claro: a Timbalada está em um arranjo social. As pessoas pensam que a Timbalada é um projeto social. A Timbalada é um grupo de desenvolvimento artístico, o projeto social quem faz sou eu, que é a Pracatum, junto com outros líderes”, explicou.

Patrícia Gomes — Foto: TV Bahia

Bendita sois vós entre os homens

Se a Timbalada deu oportunidades para dezenas de músicos e cantores, Patrícia Gomes foi a responsável por abrir as portas para as poucas mulheres do grupo – em comparação com o número de homens. Essa responsabilidade ela leva consigo até hoje, mais de duas décadas anos após sair da banda.

“Eu tive, talvez, mais oportunidade de poder levar o nome e a presença da mulher na Timbalada. Para mim, é algo muito importante e de muita responsabilidade também, até porque também eu era muito novinha, tinha 14 para 15 anos, não sabia nada de música, sonhava em ser professora. Eu costumo dizer que a Timbalada foi uma escola para mim – e que escola!”, contou.

Caçula de uma família humilde de nove filhos, Patrícia se mudou de Cachoeira, no recôncavo, para Salvador ao 13 anos, após a morte da mãe. Foi morar com uma irmã e os rumos a colocaram no caminho do Candeal, por acaso. “Diziam que eu cantava bem, então fui lá fazer um teste. Fui a última a ser ouvida e acabei sendo a escolhida. No mesmo instante gravei ‘Toque de Timbaleiro’ no estúdio e foi ali que se transformou a minha vida”.

O primeiro disco da Timbalada, lançado em 1993, foi um marco na vida de Patrícia, não somente pela questão profissional, mas também por um aspecto pessoal: aos 16 anos, ela estampou a capa com os seios pintados de branco – algo impensável nos dias atuais. A imagem virou um símbolo cultural que reverbera até os dias atuais.

“Ao mesmo tempo que foi o assustador [pintar os seios], foi muito gratificante, porque gerou uma comoção muito grande. Foi algo muito artístico, muito bonito. Tanto que até hoje, mais de 20 anos depois, as pessoas ainda falam dessa capa, então, para mim foi muito importante e foi um ato de muita coragem também”.

Patrícia recordou que a ideia de pintar os músicos era um meio de economizar, em uma época em que era inviável comprar figurino para tantos integrantes, mas era necessário criar uma identidade e causar impacto no palco. “A Timbalada chegou a ter 100 percussionistas, imagine comprar roupa para todo mundo? Mestre Pintado deu a ideia e acabou virando nossa marca registrada”.

Ainda hoje, os músicos da banda se enfeitam desse modo para as apresentações – mesmo adotando figurinos futuristas, que muitas vezes contrastam com a rusticidade da arte tribal. Pintar o corpo com tinta branca e desenhos tribais é um ritual para boa parte dos turistas que visitam Salvador. Na Bahia, ‘timbalar’ é um verbo, nascido e criado no gueto da capital baiana.

No disco “Cada Cabeça é Um Mundo”, lançado em 1995, a simbologia do título foi estampada nas carecas dos timbaleiros, fotografadas de cima, cada uma com um desenho diferente e único, personificando o significado da obra e ampliando a marca da Timbalada.

Cada Cabeça É um Mundo, álbum da Timbalada de 1994 — Foto: Arquivo pessoal

Este disco foi considerado, na época, pela norte-americana Billboard, especializada em música, como um dos melhores álbuns do mundo. Para Ninha, o impacto deste trabalho é notório pelas músicas que são cantadas até hoje, como as icônicas Toneladas de Desejo, Namoro a Dois e Camisinha.

“Na época não tinha CD, tinha vinil. Era tudo através de fita, dos rolos que iam para a gravadora e tocavam. E foram as músicas que mais cantadas nos momentos, as pessoas mais pediam nos carnavais, nos bailes. Quando tocava, as pessoas perdiam o tino e ainda enlouquecem até hoje”, lembrou Ninha.

Ninha — Foto: TV Bahia

As diversas cabeças também representam as mentes formadoras que a Timbalada formou e o que ela se tornou: um coletivo musical que se destacou em relação a outros grupos afro por unir alta carga de ancestralidade com códigos contemporâneos. Todas essas cabeças, com seus entendimentos e princípios, contribuíram com o legado timbaleiro que atravessa décadas, como argumenta Carlinhos Brown.

“O nosso som é feito pelo povo e foi escolhido pelo povo. O povo sabe o que quer e o que gosta. Cada dia que passa a gente vai ficando mais moderno, porque no som a gente leva todos os nossos aprendizados”.

Levada do timbal

Carlinhos Brown — Foto: TV Bahia

Em mais de 30 anos de existência e com mais de 20 cds lançados, nenhuma outra banda conseguiu reproduzir a sonoridade da Timbalada. Por isso, a batida de qualquer atabaque tocado por um timbaleiro, é inconfundível.

E complementa-se a isso a genialidade de Brown, que na infância batucava nos baldes da mãe, a lavadeira Madalena, e na vida adulta criou instrumentos musicais, como a ASA, a caxirola, o surdo-virado e a bacurinha, devidamente referenciada em um dos clássicos da banda, “Papa Papet”, cuja letra traz também o nome da mãe do artista.

“Queria que queria era chegar na Timbalada
Para ver chegar a menina Madalena
Ao som da bacurinha sacudir a Madalena
Contagiando todos que ali estavam”

Brown e instrumentos criados por ele, ASA e surdo virado — Foto: Divulgação

Brown tem ouvido absoluto e é tão ligado aos acordes, que cria sons a partir de grãos, pedaços de madeira, cabaças e outros elementos ligados à natureza, algo que ele demonstra profundo respeito e cuidado – e garante que “provocam efeitos melódicos e são performáticos”.

Essa mistura é observada por todos os que convivem com Carlinhos, definido pelos mais íntimos como um homem inquieto e extremamente ativo. “A Timbalada é uma fusão rítmica, onde você agrega vários valores de som, de cânticos, coloca todos eles dentro de um liquidificador, para dar um som pesquisado, um som muito bem elaborado”, resume Ninha.

Reencontro da Timbalada em Salvador — Foto: Arquivo pessoal

Para celebrar as três décadas e a mistura de sucesso que virou um símbolo da cultura baiana, a primeira e a mais recente formação da Timbalada, ao lado de Brown e das Timbaladies, se uniram e vão sair juntas no carnaval de Salvador.

Um reencontro histórico, que já começou a ser desenhado em dezembro do ano passado, quando todos se uniram no mesmo palco, no Candyall Guetho Square, para dar uma amostra do que pretendem apresentar na avenida.

“A musicalidade que a gente faz deixa a gente novo. E quando se faz tudo com amor e com carinho, isso se reflete de volta. Nós fizemos uma musicalidade que deseja o bem, então estamos tendo o retorno do que nós plantamos”, disse Ninha.

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