Tortura em supermercado expõe prática comum entre seguranças

Vigia da USP, Januário Alves de Santana, FOTO: Eduardo knapp / FolhaPress

Januário nem crime cometeu. Foi levado ao quartinho escuro, que no jargão dos torturadores refere-se ao espaço onde os clientes pegos em furtos apanham, após ser confundido com um ladrão quando tentava entrar em seu carro um Ford EcoSport , estacionado no pátio do Carrefour

por Dhiego Maia no Folha de São Paulo

Vigia da USP, Januário Alves de Santana, FOTO: Eduardo knapp / FolhaPr

O desânimo preenche o rosto e a fala de Januário Alves de Santana, 49. O motivo passa ao largo da vida regrada que precisou seguir nos últimos dias para se recuperar da cirurgia de hérnia.

Ficar em casa em vez de proteger o prédio da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, em São Paulo, como faz há quase 20 anos, deu tempo ao vigia para uma reflexão: no que diz respeito ao uso da violência indiscriminada como política de dissuasão de furtos em supermercados, nada mudou.

Januário saca o celular e mostra a cena que o fez repensar a vida e que levou a Folha a procurá-lo. Na tela, um jovem negro surge amarrado, amordaçado e despido no depósito de um supermercado.

Ali é chicoteado numa sessão de tortura executada por dois seguranças que, segundo a vítima, durou 40 minutos. Tudo foi filmado e compartilhado nas redes sociais por um dos agressores.

Furtos representaram 20% das perdas de produtos em 2018,

de acordo com associação do setor

O garoto, ameaçado de morte, deixou a casa de um dos irmãos e está abrigado num centro para adolescentes vulneráveis da Prefeitura de São Paulo. Os seguranças suspeitos estão presos preventivamente e viraram réus pelo crime de tortura. Eles disseram, por meio de seus advogados, que só falam do caso em juízo.

“Doeu a minha alma ver um irmão de cor ser chicoteado daquela maneira”, diz.

Dez anos atrás, Januário foi colocado na mesma posição do garoto de 17 anos, punido à revelia da lei ao tentar furtar barras de chocolate em julho deste ano no supermercado Ricoy, na zona sul da capital.

Mas Januário nem crime cometeu. Foi levado ao quartinho escuro, que no jargão dos torturadores refere-se ao espaço onde os clientes pegos em furtos apanham, após ser confundido com um ladrão quando tentava entrar em seu carro um Ford EcoSport , estacionado no pátio do Carrefour, em Osasco (Grande SP), em agosto de 2009.

“Fui torturado porque sou negro. Para eles [seguranças] um negro como eu não tem condições e nem pode ter um carro como esse”, afirma.

O vigia teve dentes e parte do maxilar quebrados. Levou socos, coronhadas na cabeça e foi até enforcado. As investigações apontaram que seis seguranças participaram do espancamento. Saiu vivo da tortura com a chegada da polícia.

“Mas até os policiais duvidaram de mim. Disseram que eu tinha passagem. A sorte é que a minha mulher apareceu, viram que eu tinha família e documentos que mostravam que o carro era nosso”, conta.

Os seguranças envolvidos foram demitidos, mas absolvidos no Tribunal de Justiça do crime de tortura por falta de provas. O advogado de Januário, Dojival Vieira, diz que vai entrar com processo junto a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA [Organização dos Estados Americanos].

O vigia da USP firmou acordo extrajudicial na época com o Carrefour e pensou que a violência que sofreu nunca mais fosse repetir. Mas em 2018, outro segurança da mesma unidade onde Januário foi torturado saiu do protocolo: matou a cadela Manchinha com uma barra de alumínio.

O pedreiro Ademir Peraro, 43, não teve a mesma sorte de Januário. Pego em 2009 com pães de queijo, coxinhas e creme para cabelo furtados no Dia, em São Carlos (SP) os produtos não passavam de R$ 26 , foi espancado e permaneceu trancado no banheiro até o fechamento da loja, quando foi libertado. Morreu a caminho do hospital.

Especialistas que estudam a tortura dizem que justiceiros disfarçados de seguranças sempre existiram nos porões do setor supermercadista brasileiro. Reportagem publicada na Folha em 1993 mostrou que o jovem Pedro Clemente, 18, foi degolado por dois vigias e teve seu corpo abandonado no depósito de um supermercado em Belford Roxo, no Rio. O motivo: a vítima teria furtado um pedaço de bolo.

Heloisa Pait, hoje professora de sociologia da Unesp, fez trainee numa grande rede de supermercados de São Paulo no final da década de 1980. Numa loja da periferia, lembra que estranhou a presença de muitas bebidas caras à vista. Mas o gerente me tranquilizou: dos furtos cuidavam os justiceiros locais, lamenta.
Edson José dos Santos, porta-voz do sindicato dos empregados das empresas de vigilância de São Paulo, confirma. Se uma pessoa da periferia e, claro, pobre é pega furtando, ela não vai sair de maneira saudável de um supermercado em São Paulo, diz.

Foi o que aconteceu com um idoso, morador de rua, flagrado tentando sair com um pedaço de mortadela do supermercado Master, que fica dentro do shopping Frei Caneca, no centro de São Paulo.

O caso, ocorrido em 2018 e flagrado pela reportagem da Folha, terminou com a vítima espancada por seguranças numa sala isolada. Os suspeitos foram apenas afastados das funções, e o inquérito que apura o caso não foi concluído porque a vítima nunca mais foi encontrada pela polícia.

A carreira de segurança privada no país absorveu, após a Ditadura Militar (1964-1985), muitos policiais que deixaram a corporação ou foram expulsos por má conduta. O setor é porta de entrada para pessoas com baixa escolaridade.

É a Polícia Federal a responsável por fiscalizar as empresas do setor e regular os cursos de treinamento para vigilantes. De 2017 para cá fechou 356 empresas irregulares.

Furtos são computados no índice de perdas dos supermercados, que incluem os produtos vencidos, por exemplo. Segundo a Abras (Associação Brasileira de Supermercados), o crime representou 20% das perdas em 2018. Os itens mais furtados são carnes, cervejas, barras de chocolates, queijos e desodorantes.

“Os novos casos de tortura em supermercados criaram discussão porque, pela primeira vez, eles puderam ser vistos”, analisa Gorete Marques, pesquisadora da área do Núcleo de Estudos da Violência, da USP.

“A tortura é um tipo de violência invisibilizada. Acontece em espaços de pouco acesso e a vítima é ameaçada a não denunciar. Mas a circulação das imagens foi o pulo do gato porque produziu provas”, afirma Marques.

Após o menino chicoteado no Ricoy, imagens de outro homem negro sendo espancado e atingido por choques elétricos nas mãos na loja do Extra, no Morumbi (zona oeste de SP), também foram compartilhadas nas redes sociais. A filmagem levou cinco dos seis agressores à detenção.

O delegado Pedro Luís de Sousa, titular do 80ºDP (Vila Joaniza) diz investigar mais duas denúncias de tortura em sua área de atuação. Fotos de um homem com o corpo cortado por supostas chicotadas e um vídeo de uma criança sendo intimidada por supostos seguranças do Ricoy estão no alvo do delegado.

“O Carrefour errou”, diz Karina Chaves, gerente de diversidade do grupo no Brasil. “Mas ficou a lição. Não queremos mais aquele segurança com cara de policial, mas o que saiba atender as pessoas. Cerca de 30% da equipe é composta por mulheres.”

O Ricoy disse que trocou a empresa de segurança e colabora com a polícia para a elucidação de novos casos em suas unidades. O Dia afirmou que não compactua com nenhum ato de violência.

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