Trabalho forçado e sociabilidades negras e indígenas no Pantanal (1889-1930)

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por Ana Carolina da Silva Borges
Ana Carolina da Silva Borges é Doutora em História Cultural pela UNICAMP; Professora Efetiva na UFMT.

Longe de estar cristalizado em um ideal idílico de “natureza intocada” ou “espaço vazio”, o Pantanal é um bioma-sujeito que se constitui num movimento integrador entre meio ambiente e sua gente, sobretudo negra e indígena, que ali vive e historicamente o territorializa. Aqui quero dar a conhecer algumas das interações entre povos indígenas (como os Guaná, Guató e Bororo), populações negras, mestiços pobres, patrões e latifundiários, que são demarcadas por redes de sociabilidade históricas no Pantanal entre um universo de trabalhos forçados e violências cotidianas e as estratégias e formas de resistência desses sujeitos subalternizados diante daquela realidade histórica.

Vejamos algumas dimensões disso através do depoimento do trabalhador Bento Rafael: “[…] A usina deu trabalho, deu vida para o pobre que não tinha comida./ Aí o homem virava inté bicho, só fazia geme e chorá, pra comé tinha inté que suá sangue./ Tinha coroné que ajudava a gente, arguns era maldito, ruim, mandava inté batê e mata tudo aqueles que não queria fica na usina pra trabalha./ Nós pobre, sem nada pra viver, calava com as morte, trabalhava, não tinha voz naquele silenço que defendesse nós. Delegado de polícia nem pensá afilhado ou coroné e nós trabalhava quieto, comia quieto, morria quieto”.

Esta narrativa faz referência à memória particular e às vivências desse morador e trabalhador rural do Pantanal que desenvolveu algumas funções em duas propriedades agrárias no início do século XX: a Usina Arica (por volta de 1917) e a Usina Conceição (a partir de 1925), localizadas às margens do rio Cuiabá. Nas lembranças de Bento Rafael, o caminho percorrido nessas propriedades foi marcado por aspectos dissonantes, exibidos em meio ao personalismo construído sobre a figura do coronel. Os passos desse morador e trabalhador local – e de tantos outros – dependiam também dos “senhores da terra”, pois sua influência na dinâmica pantaneira impactava na condução da vivência diária desses sujeitos: se seria mais leve (segura, autônoma e ligeira) ou mais pesada (difícil, cansativa e violenta). Ora, nesses mundos do trabalho no Pantanal, cabia ao coronel também delimitar o presente-futuro de seus contratados nos períodos de safra e entressafra, impactando no próprio cotidiano desses sujeitos e suas famílias.

Rotas de Usinas presentes no Pantanal matogrossense. Cuiabá, 2000. Fonte: Lenine C. Póvoa.

O tipo de trabalho oferecido por esses “senhores da terra” tinha uma lógica extensiva que ultrapassava o imediato domínio sobre a mão-de-obra explorada nas fazendas e usinas e se desdobrava sobre os corpos e o cotidiano dos trabalhadores. O simples ato de ofertar comida ou de ordenar uma surra, por exemplo, demonstram bem os diferentes modos pelos quais tais proprietários controlavam tanto a produção local quanto a própria vida das famílias presentes em suas áreas e/ou sob sua esfera de influência (e de mando). Soma-se a isto o ritmo/tempo de trabalho. A documentação levantada aponta que muitos destes trabalhadores iniciavam suas atividades nas usinas às 5h e terminavam às 20h. Isso nos períodos de safra. Na entressafra, o horário de término era outro: 23h. Nesse extremo ritmo de trabalho, pequenos intervalos só eram permitidos ao longo do dia para as refeições pontuais, sob o olhar atento dos capangas armados que estavam ali para evitar tentativas de fuga e/ou suicídio.

O trabalho forçado foi, assim, um instrumento de controle e vigilância acionado por esses coronéis para a manutenção de seu poder e autoridade naquela realidade local, além de ser articulador de uma série de violências (física e mental) empreendidas nesses ambientes mais remotos – ou sertões – do Brasil. Essa modalidade de trabalho, que se liga aos motes de expansão capitalista pelo interior do país, submeteu populações étnica e racialmente diferenciadas (negras, indígenas e mestiças) que não tinham direito e/ou posse de terras a atribuições estafantes e desumanas e a condições de vida extenuantes. O que se percebe aqui são formas de reprodução das lógicas do cativeiro nos horizontes do pós-abolição, revelando as contradições durante a Primeira República no Brasil – e para além dela – e o que aconteceu com a gente negra no Pantanal nesse período.

Além do trabalho forçado nas grandes propriedades agrárias do Pantanal, houve também a indução dessa modalidade de trabalho em obras públicas e outras atividades conduzidas pelo Estado na região, trazendo como alvo os “grupos desempregados” de homens e mulheres que passariam a compor, por exemplo, a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas chefiada pelo marechal Cândido Rondon. Nesses ambientes de edificação e fluxo transitório para o progresso da nação, que buscava tornar conhecido o que era pouco explorado, encurtar distâncias e integrar o território nacional, muitos daqueles trabalhadores convocados se perderam no passado e não deixaram muitas coisas pelo caminho, a não ser suas cruzes. Mas desse silêncio ecoam outras nuances que questionam as violências e estratégias de apagamento.

Por exemplo, em trechos do próprio relato de Cândido Rondon, publicado em 1910, é possível perceber pequenas dimensões sobre a precarização das atividades diárias da Comissão de Linhas Telegráficas. Os recursos eram poucos e a execução do conjunto de atividades demandava um grande contingente para as turmas de expedição. Logo, a convocação de mão-de-obra e a reprodução do trabalho compulsório era a saída possível para efetuar as atividades da Comissão. Porém, havia um burburinho no universo popular local que reiterava o quanto muitos trabalhadores evitavam essas atribuições e preferiam manter-se vivos nas cidades do que se lançar a dias tão difíceis e mortíferos oferecidos pela Comissão.

De acordo com Laura Maciel, corriam em Cuiabá: “[…] boatos de que quem ia para a Comissão nunca mais voltava, trabalhando como ‘escravo’ até o fim de seus dias”. Rotina extenuante que, segundo Miriam Rejane Ferreiro, era comparável ao que ocorria nos seringais da Amazônia e nas usinas de açúcar no Nordeste. Para fugir desses empregos compulsórios, e da subalternização que poderia lhes levar à morte, muitos sujeitos viraram desertores da Comissão e foram perseguidos por tal ato contrário ao progresso nacional que começava a se instalar ali, no Pantanal.

Em grande medida, esse menosprezo à vida e a visão de inferioridade legados aos sujeitos pantaneiros – e seus corpos negros, indígenas e/ou mestiços – era justificado pela égide do progresso e tinha grande influência, à época, das impressões deixadas por naturalistas europeus que visitaram o Pantanal ao longo da segunda metade do século XIX. E cujos relatos estão calcados no racismo eugênico sobre aquela gente pantaneira e em visões utilitaristas dos recursos naturais desse bioma. Dentre os naturalistas do período, destaca-se Hebert H. Smith que expressou o seguinte quanto aos habitantes do Pantanal: “[…] extrato inferior da civilização, mas aparente talvez na América do Sul, porque é fácil viver nestas plagas uberosas, e porque as raças mestiças, tão comuns aqui, herdaram os hábitos inertes e descuidados de seus antepassados índios e africanos”.

Sobre os mestiços pantaneiros, H. Smith é extremamente cruel ao enfatizar que: “Hão de desaparecer em grande parte à medida que da terra se forem apossando gente mais industriosa, hão de submergir-se e morrer diante da onda de imigração europeia. Pois que morra! É o último serviço que podem prestar ao País”. Uma visão de progresso em que só há lugar para a branquitude. Esse é o tipo-ideal de nação que foi absorvido e reproduzido pelo Estado durante a Primeira República.

Logo, essas versões socioeconômicas e suas ideologias políticas – excludentes e segregadoras – foram amplamente disseminadas em Mato Grosso no curso do período analisado. Aqui, uma avalanche de micro-acontecimentos atingiu em cheio essas bandas da região fronteiriça do Brasil central e sua população, em grande medida negra e indígena: um novo cotidiano de trabalho diante da inserção e ampliação de propriedades privadas, da “modernização” dos campos de gado, da industrialização das usinas, do novo perfil de concentração de terras na região e da expropriação fundiária de pequenos agricultores e pescadores. Um conjunto de ações políticas (e com aval científico) que foi promovido pela elite local junto com bancos e investidores, estrangeiros e nacionais, e fez com que ali fosse imposto um novo mundo social e produtivo que se sobrepunha às dinâmicas locais (tradicionais) da ruralidade pantaneira.

Além de denunciar e historicizar esse universo de arbitrariedades contra a população local, este texto serve ainda para olhar o passado sob outras perspectivas. Isto porque tensiona os discursos acerca da efetividade de tais projetos territoriais e de um “coronelismo positivado”, mobilizados por memorialistas e retroalimentados por pressupostos temporais lineares, contínuos e de grande sucesso. Outros sujeitos sociais emaranham essa temporalidade progressiva, hegemônica e embranquecida. São homens, mulheres e crianças negras, indígenas e mestiças, tratados como “vagabundos”, “preguiçosos” e “miseráveis”, que revelam histórias dinâmicas, de muita criatividade, resistência e sofisticação em suas formas de vida, territorialização e manejo no Pantanal.

Como exemplo dessa outra margem de dinâmicas locais e suas historicidades, podemos nos deter às populações indígenas cuja presença ancestral desmonta a versão de que o Pantanal era espaço vazio e despovoado. Isso era (é) uma inverdade, tanto que a própria Comissão de Linhas Telegráficas de Rondon contou, no ano de 1902, com mais de 100 indígenas do povo Boe Bororo, também chamados à época de Coroados. Os indígenas eram mobilizados nos serviços da Comissão em vista do cenário de deserções e mortes de outros trabalhadores locais, já comentado aqui. Ou seja, aproximar os indígenas locais era importante para a continuidade e efetivação das atividades da Comissão, haja vista que num lapso apenas de cinco meses a mesma (que deveria durar seis anos) teve seus contingentes encurtados em mais de 60%.

Diante disso, por exemplo, o “Cacique Barú (céu) da Aldeia Cogueau (peixe dourado)”, acompanhado de mais de 120 indígenas – entre homens, mulheres e crianças –, foi bem recebidos pelos responsáveis da Comissão, se prontificando a executar um conjunto de tarefas árduas e temporárias que consistia na abertura e limpeza de picadas, “[…] trabalho enfadonho que exigia dos trabalhadores muita força, pois se tratava de rolamento de troncos de madeira derrubada no picadão”. Esse tipo de evento indica que os indígenas estavam longe de serem “hostis”, “sanguinários” e “preguiçosos”, sabendo estrategicamente tratar e dialogar com os invasores e afinar alianças que serviriam para a sua sobrevivência diante desses processos que começavam a alcançar seus territórios.

De forma similar, famílias negras e mestiças também teciam suas estratégias para contornar aquela realidade extenuante imposta pelos trabalhos forçados, sobretudo nas fazendas e usinas. Aqui, torna-se evidenciada uma profusão de atividades e contatos locais entre vizinhos e famílias que culminaram em laços de solidariedade horizontais, calcados no princípio básico de sobrevivência coletiva e reciprocidade local. Nesse horizonte, situações espontâneas eram oportunamente estabelecidas entre trabalhadores das grandes propriedades e pequenos e médios agricultores pantaneiros, observando-se as operações do dia-a-dia que mostram que, para além do trabalho forçado e informal e da presença latente dos “grandes senhores de terra” dessas localidades, haviam ligações duradouras de amparo, reciprocidade e autonomia entre essas pessoas.

Trabalhadores e crianças na limpeza de garrafas na Usina Itaicí. Fonte: Acervo da Secretaria Municipal de Cultura de Santo Antônio de Leverger.

Logo, a partir de vários fragmentos de vida, tentei costurar esse ambiente rural pantaneiro que passava por processos de modernização e industrialização durante a Primeira República, interferindo nas dinâmicas locais em vista da projeção de uma nova racionalidade e ritmos de trabalho que ocasionavam danos irreparáveis àquelas famílias rurais do Pantanal, negras e mestiças pobres, bem como aos povos indígenas habitantes da região. Outras dimensões disso são melhor exploradas em meu livro Nas águas do “sertão”: meio ambiente e cotidiano do trabalho forçado no Pantanal. Neste texto, busquei desvelar histórias pouco visitadas acerca do “sertão” pantaneiro e suas ligações com o projeto de nação no Brasil entre 1889 e 1930, tendo como norte o cotidiano de sujeitos subalternizados e suas famílias diante dos poderes senhoriais locais.

Em outras palavras, para além desse universo de prospecção capitalista – e dos trabalhos forçados –, a região do Pantanal era composta por moradores que praticavam também a agricultura familiar e estabeleceram vínculos de parentesco e de vizinhança, com apadrinhamentos horizontais e uma série de atividades coletivas. Emerge um outro universo, de sociabilidades e solidariedades entre sujeitos subalternizados – negros/as, mestiços/as e indígenas – que criavam estratégias para viver e sobreviver diante dos autoritarismos locais. Dimensão que torna-se marca fundamental para se compreender a rede de relações e os sentidos de comunidade entre trabalhadores e proprietários rurais, sobretudo aqueles habitantes mais antigos que tinham roças diminutas e resistiram com seus costumes locais (agrários) e de forte vínculo com a natureza pantaneira.

Assista ao vídeo da historiadora Ana Carolina da Silva Borges no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF09HI02 (9º ano: Caracterizar e compreender os ciclos da história republicana, identificando particularidades da história local e regional até 1954); EF09HI08 (9º ano: Identificar as transformações ocorridas no debate sobre as questões da diversidade no Brasil durante o século XX e compreender o significado das mudanças de abordagem em relação ao tema).

Ensino Médio: EM13CHS302 (Analisar e avaliar criticamente os impactos econômicos e socioambientais de cadeias produtivas ligadas à exploração de recursos naturais e às atividades agropecuárias em diferentes ambientes e escalas de análise, considerando o modo de vida das populações locais – entre elas as indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais –, suas práticas agroextrativistas e o compromisso com a sustentabilidade).


Ana Carolina da Silva Borges

Doutora em História Cultural pela UNICAMP; Professora Efetiva na UFMT.

E-mail: ana.borges@ufmt.br

Instagram: @anacarolina.borges.1232


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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