Trainee para negros é constitucional e não é enquadrado em lei contra o racismo

FONTEConsultor Jurídico, por Rafa Santos
Iniciativa de promover programa de trainees exclusivo para negros gerou atritos entre magistrados da Justiça do Trabalho (Foto: Divulgação/ Magazine Luiza)

A iniciativa da rede de lojas Magazine Luiza de promover o seu primeiro programa de trainee voltado exclusivamente para o recrutamento de pessoas negras provocou intenso debate público e acabou respingando no Poder Judiciário, mas especificamente na Justiça do Trabalho. Segundo a maioria dos especialistas ouvidos pela ConJur, a ação é constitucional e não pode ser enquadrada na Lei contra o Racismo.

Ao comentar a notícia divulgada pela rede varejista, a juíza Ana Luiza Fischer Teixeira de Souza Mendonça, do TRT-3, em Minas Gerais, afirmou que o processo é inadmissível. “Discriminação na contratação em razão da cor da pele: inadmissível”, escreveu nas redes sociais. Depois questionou a constitucionalidade programa de trainees da companhia. “Na minha Constituição, isso ainda é proibido”, completou ao responder um comentário feito na publicação original.

As declarações da juíza provocaram uma onda de reações contrárias. Em entrevista à rádio CBN, a presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), Noêmia Aparecida Garcia Porto, afirmou que a declaração gerou incômodo na categoria. “A fala da colega vai na contramão de tudo que a Justiça do Trabalho tem feito até aqui”, afirmou.

A declaração da presidente da Anamatra foi rebatida pelo representante da Associação Brasileira dos Magistrados do Trabalho, Otávio Calvet, que assinou nota em apoio a juíza Ana Luiza. “Não há qualquer debate público ou consenso entre os milhares de magistrados do trabalho sobre tão novo assunto, sequer havendo notícia de judicialização da matéria nos nossos tribunais. Ademais, a Anamatra não possui mandato para expressar a opinião da categoria sobre temas jurídicos. A manifestação infeliz reflete apenas o entendimento pessoal da emissora ou, no máximo, da diretoria de referida associação”, diz trecho da manifestação. Clique aqui para ler na íntegra.

O tema também foi explorado por políticos que prometeram questionar a empresa na Justiça. Para além do mal estar gerado entre magistrados da Justiça do Trabalho, a ConJur consultou especialistas sobre a legalidade da iniciativa e a maioria dos ouvidos aponta que o programa de trainees da rede de lojas é completamente legal.

O advogado constitucionalista Eduardo Mendonça lembra que o Supremo já reconheceu a constitucionalidade de políticas de reserva de parte das vagas em universalidades e em concursos públicos. “Não vejo inconstitucionalidade alguma em que uma empresa, tendo constatado que os negros são minoria em seus quadros, promova um programa de seleção de trainees voltado especificamente para essas pessoas, como forma de fomentar ativamente à diversidade no ambiente interno. A busca por diversidade é um fim legítimo à luz da Constituição. E deve-se respeitar a autonomia da empresa para adotar essa política”, explica.

Para Daniel Gerber, advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, o programa reflete um problema de ordem constitucional sobre a interpretação do que é discriminação de raça, cor e credo, por exemplo. “Não é um programa que estimula a segregação. Pelo contrário, o espírito é justamente o oposto. O intuito é estimular a integração, que pelos caminhos tradicionais não ocorre. Não há crime nem violação a dispositivos constitucionais”, avaliou.

Apesar de reconhecer a intenção da empresa de facilitar o acesso de negros em seu programa de treinamento, a advogada Vera Chemim enxerga inconstitucionalidade na iniciativa. “Independentemente da ‘boa intenção’, a interpretação acerca dessa iniciativa remete inquestionavelmente aos incisos XXXV e a XLI, do artigo 5º, da Constituição, que dispõem respectivamente sobre lesão ou ameaça ao direito e, principalmente, que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, sem olvidar o inciso XLII que prevê a prática de racismo sujeito às sanções de natureza penal. A rigor, aquela restrição pode ser entendida como discriminatória, uma vez que exclui a possibilidade de outras raças poderem participar do processo seletivo”, afirma.

Instituto da igualdade racial

A advogada Cecilia Mello lembra que iniciativas como a da Magazine Luiza estão respaldadas pelo Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela Lei 12.288/2010. “Essas ações nada mais são do que programas, projetos e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para corrigir desigualdades raciais por meio da igualdade de oportunidades. Se temos um contexto social que por décadas não assegurou essa igualdade, medidas afirmativas são direcionadas à correção do passado. Ao contrário do decidido, o programa apenas vem dar efetividade à igualdade racial, constitucionalmente assegurada, e à própria lei”, explica a advogada.

Christiany Pegorari Conte, advogada e professora de Direito e Processo Penal da PUC-Campinas, também não enxerga nenhuma ilegalidade no programa. “As ações afirmativas já foram consideradas constitucionais como na ADPF 186”, lembra.

O julgamento da ADPF tratou a implementação de cotas raciais pela Universidade de Brasília em 2012. Na ocasião, o colegiado, por unanimidade, acompanhou o voto do relator, ministro Ricardo Lewandowski, que apontou que as cotas da UnB não se mostravam desproporcionais ou irrazoáveis.

Crime de racismo reverso?

Um dos pontos levantados pelos detratores da iniciativa é a de que ela poderia ser enquadrada na Lei 7716/89 (Lei contra o racismo) que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. A hipótese é refutada por Pegorari. “Não me parece existir enquadramento típico, pois não se está obstando a contratação de outras raças, etnias, mas sim corrigindo uma desigualdade de acesso a oportunidade de trabalho”, pontua.

Por fim, o advogado Welington Arruda, mestrando em Direito pelo IDP, pontua que o ordenamento jurídico brasileiro está recheado de regras que autorizam as chamadas ações afirmativas que garantam a inclusão das pessoas negras no mercado de trabalho.

“O Brasil adotou a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho como pilares do Estado democrático de Direito, garantidos e preceituados no artigo 1º, da Carta Magna”, explica.

Arruda também cita o Estatuto da Igualdade Racial e o julgamento da ADPF 186 para justificar a legalidade do programa da Magalu. “Nossa Constituição possui objetivos claros, dentre eles a inclusão social, e não se pode inviabilizar as ações afirmativas e inclusivas a partir de interpretações pequenas, restritivas e cheias de preconceitos de textos de lei que nasceram para garantir que é necessário desigualar para igualar”, finaliza.

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