Trajetórias e territórios negros na vila de Itu (1770-1840)

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por André Santos Luigi
André Santos Luigi é Doutorando em História da África pela UNICAMP; Professor de História e Pedagogo

Quem visita a cidade de Itu, no interior do estado de São Paulo, certamente não permanece indiferente ao patrimônio arquitetônico do Eixo Histórico: igrejas, conventos, praças, sobrados e casarões relembram uma fase de pujança econômica que ficou no passado. Desmembrada de Santana de Parnaíba em 1657, a então vila de Ytu se consolidou como o último ponto de apoio das rotas que seguiam em busca de ouro em Cuiabá. Esta posição lhe rendeu a alcunha de “boca do sertão”. Por aqui também se reorganizavam as tropas de muares que seguiam para abastecer a emergente exploração aurífera das vilas de Minas Gerais. Entretanto, com a crise do ouro na segunda metade do século XVIII, o marquês de Pombal reestruturou a economia de São Paulo a partir da produção açucareira. Itu liderou este processo: em 1798 produzia cerca de 25% do açúcar de toda a Província. É neste período, entre 1770 a 1840, que o Eixo Histórico de Itu é construído. A antiga “boca do sertão” se torna a “Roma brasileira”.

Mapas estilizados da evolução urbana da vila de Itu. Itu, São Paulo, 1770 a 1840. Fonte: Walter Toscano (1981).

Mas cabe questionar: Quem construiu tudo isso? Quem plantou a cana? Quem produziu o açúcar? Os maços de população de Itu no período açucareiro (1780-1840) nos ajudam a responder estas questões. Os números impressionam pela crescente presença de escravizados em Itu, comprovando o protagonismo da população negra na construção da chamada “Cidade do Açúcar”.

Número de livres e escravizados na vila de Itu. Maços da população de Itu, 1733 a 1829. Fonte: Eni de Mesquita Samara (2005).

Por aqui, negros e negras, africanos ou ladinos, cativos ou forros, foram explorados sob o regime da escravidão, mas também produziram seus próprios espaços de sociabilidades. Africanismos foram recriados no contexto da escravidão, construindo instituições urbanas típicas da diáspora africana. Elas também existiram em Itu, produziram e construíram a cidade e, portanto, são também parte de sua história. Vejamos alguns lances e personagens dessa história enegrecida de Itu.

Quitandeiras

Selma Pantoja explica que a quitanda (kitanda) é uma invenção social dos povos bantus da África Central adaptada ao contexto da diáspora atlântica. Em Luanda, a quitanda era uma atividade exclusiva de mulheres que dominavam a rede de abastecimento de alimentos da cidade. Uma prática que atravessou o Atlântico, subiu a Serra e alcançou a “boca do sertão”. A vila de Itu foi sustentada pelas quitandeiras: suas redes articularam roças e roceiros, abasteceram comércios, casas, conventos e igrejas, viabilizando a vida urbana. São novas dimensões da vida urbana da América portuguesa que estudos da história das mulheres, gênero e identidades femininas na África têm revelado nessas encruzilhadas transatlânticas. Mulheres negras, cativas ou forras, chefes de família, que trabalhavam e acumulavam poupança, compravam sua liberdade ou adquiriam propriedades, revelando redes de sociabilidades e solidariedades. Maria Odila Dias, ao estudar as quitandeiras da vila de São Paulo, demonstra como estas trabalhadoras também assumiram protagonismo comunitário, tornando-se lideranças estratégicas da sociabilidade negra.

Na vila de Itu, o próprio traçado de suas ruas e becos apontam esta articulação: o beco da Quitanda é contíguo ao beco da Macumba e ao beco do Barulho. O comércio, a religiosidade e a festividade negra grafam o espaço urbano ituano.

Algumas destas mulheres negras aparecem em contratos de compra e venda guardados no Fundo Cartorial do Arquivo do Museu Republicano Convenção de Itu (MRCI). Por exemplo: em 1798, um contrato de compra e venda cita a escrava Graça como proprietária de uma casa na rua Santa Cruz. Já em 1810, a forra Florinda Arruda vendeu sua casa na rua Santa Rita para o alferes Manoel Costa Aranha por 38$400 réis. Em 1824, Catarina Paxeco, “parda forra”, comprou sua casa na rua Santa Cruz por 51$200 réis. Naquele mesmo ano de 1824, a forra Jacinta Maria comprou sua casa na rua das Flores por 12$800 réis; ela comprou do escravo Inácio. Outro exemplo é a compra de um terreno pela “preta forra” Teresa Amaral por 57$600, em 1831. O terreno era da Irmandade de São Benedito, uma congregação negra típica de cidades atlânticas.

Irmandades negras

James Sweet revela que as irmandades negras eram verdadeiras instituições afro-atlânticas, presente em praticamente todas as grandes cidades que se articularam ao tráfico transatlântico: Lisboa, Porto, São Salvador (Angola), Luanda, Salvador, Olinda, Recife, Belém, São João del Rei, Sabará, Ouro Preto, Rio de Janeiro, São Paulo, Santos e tantas outras. Segundo João José Reis, mais do que oferecer apoio mútuo, as irmandades negras recriavam etnias, simulando linhagens e projetando no santo protetor uma referência ao ancestral. Recriavam assim, identidades afro-diaspóricas, reproduzindo termos africanos adaptados ao contexto atlântico. Lucilene Reginaldo, em Os rosários dos Angolas, revela que ao longo do século XVIII, as irmandades do Rosário compostas de escravizados e libertos predominaram, se comparadas com as confrarias de outros santos negros. A autora encontra irmandades em todo o mundo atlântico: Lisboa, Coimbra, Luanda, Congo, Quissama e em toda a América portuguesa.

Itu se conecta ao circuito afro-atlântico e, desta forma, também sediou uma Irmandade da Senhora do Rosário. O Fundo Cartorial do MRCI guarda uma escritura de compra de venda de um terreno na rua do Comércio – atual rua Floriano Peixoto – que revela a existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário na vila de Itu. As possibilidades que tal documento apresenta são imensas. Quem exerce a venda do terreno é o personagem Joaquim Rodrigues Cesar da Fonseca, um preto forro indicado como “Rei da Irmandade da Senhora do Rosário”. Certamente estamos diante do mesmo processo que se repete por toda a América portuguesa quando africanos provenientes da região da África Centro-Ocidental reproduzem sua experiência prévia do catolicismo do Congo. Marina de Mello e Souza demonstra que a congada não era apenas uma encenação. A Congada e o “Rei do Congo” expressam a reconstrução de hierarquias tradicionais com signos africanos. No caso da vila de Itu, o próprio documento comprova isso: o escrivão e o comprador reconhecem a autoridade de Joaquim Rodrigues Cesar da Fonseca, preto forro, para negociar o imóvel representando a entidade. O documento também apresenta a composição da mesa diretora da Irmandade, destacando que seus “deputados” eram “negros, todos cativos”. Há também o registro do tesoureiro da irmandade: o Padre Simão Stock do monte Carmelo.

Outra entidade afro-atlântica muito importante é a Irmandade de São Benedito. Em Itu seu registro mais antigo data de 1693, com sede na antiga Igreja de São Luiz, Bispo de Tolosa, no antigo largo de São Francisco. Formalizada em 1710, todo ano, no mês de janeiro, a Irmandade negra realizava a tradicional festa de São Benedito: sua procissão mobilizava toda a região, bem como o batuque de terreiro realizado no pátio da Igreja. Em 1795, o Largo de São Francisco recebeu um imenso cruzeiro construído pelo mestre de cantaria Joaquim Pinto de Oliveira, o famoso mestre Tebas. O arquivo da própria Irmandade guarda dois livros com centenas de registros dos confrades “cativos e/ou forros”, abarcando um período que vai de 1785 até 1835. Ambos os registros foram escritos pelo grande artista Miguel Arcanjo Benício de Assunção Dutra, de quem falaremos a frente.

Havia também a Irmandade da Boa Morte dos Homens Pardos, cujos festejos dominavam o calendário religioso ituano. Seu juiz-de-festas era o famoso Padre Jesuíno do Monte Carmelo. A existências destas irmandades negras, sua composição, o número de confrades e até mesmo sua localização privilegiada dentro da vila de Itu são reminiscências de espaços afro-atlânticos construídos por gente negra no passado, de modo a garantir-lhes certos lugares de sociabilidade e redes de solidariedade que desempenharam papéis importantes na dinâmica urbana do período, e para além dele. Espaços cujos sentidos de pertencimento e resistência da cultura negra na cidade de Itu ganham mais relevo e profundidade ao se focalizar em conjunto com as trajetórias de alguns personagens históricos importantes.

Uma releitura necessária: personagens negros em Itu

Os documentos sobre essas irmandades negras apresentadas guardam uma particularidade em comum: registram a atuação de dois personagens famosos da história de Itu – Jesuíno do Monte Carmelo e Miguel Dutra. Jesuíno foi estudado por Mário de Andrade, que reconstituiu sua biografia e sistematizou sua obra, lhe batizando como o precursor do barroco paulista. Já Miguel Dutra, apesar de reconhecido, não foi muito valorizado por Mário de Andrade. Ambos os artistas continuam sendo muito estudados por pesquisadores da história da arte e da arquitetura. Suas obras repousam nos acervos das instituições de artes mais respeitadas do país. No entanto, chama a atenção como a abordagem sobre ambos os personagens não os inserem na comunidade negra de Itu do período.

Jesuíno Francisco de Paula Gusmão, foi um pintor, arquiteto, escultor, encarnador, dourador, entalhador, músico e poeta. Nasceu em Santos, em 1764, sendo filho de Domingas Inácia de Gusmão, uma mulher negra forra. Em 1781, veio para Itu já iniciado na arte da pintura e tornou-se ajudante de José Patrício da Silva Manso no adorno da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária. Seu talento logo foi reconhecido, assumindo o adorno de diversos templos na cidade, com destaque para a nave central da Igreja do Carmo. Se casou e teve cinco filhos. Foi contratado para adornar igrejas na cidade de São Paulo. Vivendo na capital, já viúvo, se tornou padre em 1797. Mas, segundo Mário de Andrade, o sacramento é acompanhado de uma marca: “ex-defectu natalium”, ou seja, possui um defeito de origem – a pele negra. O mesmo motivo o impede de ingressar na Ordem do Carmo em Itu. A partir daí Jesuíno se lançou ao grande desafio de sua vida: construir uma Igreja para Nossa Senhora do Patrocínio em Itu. Sua empreitada atraiu seguidores, formando um grupo conhecido como “Padres do Patrocínio”. Dentre seus seguidores estavam seu próprio filho, Simão Stoke do Monte Carmelo, Diogo Antônio Feijó (futuro Regente Feijó) e Antônio Joaquim de Melo (futuro bispo de São Paulo). Os Padres do Patrocínio ficam conhecidos como um grupo de intelectuais, politicamente ativos, de ideias liberais. Jesuíno morreu em 1819, um ano antes da inauguração da Igreja do Patrocínio.

Mário de Andrade dedicou uma obra ao estudo do legado de Jesuíno. Classificou sua arte como a expressão mais genuína do barroco paulista. Mas seu texto é cheio de preconceitos típicos do mulatismo modernista: Jesuíno é descrito como um homem agradável e afável, mas malandro e contraditório. Chama a atenção como até então não se explorou o fato que Jesuíno habitava uma cidade massivamente negra, onde participou e foi juiz-de-festas da Irmandade da Boa Morte dos Pardos; bem como seu filho foi tesoureiro da Irmandade do Rosário. O próprio Mário de Andrade insiste que Jesuíno era constantemente lembrado por sua negritude: “Padre, mas mulato” e “Pardo, filho de parda, neto de parda. Negro”. Uma estrutura narrativa que se perpetuou nos diversos estudos que abordam a obra de Jesuíno: artista de valor inestimável, de moral questionável, isolado da comunidade. O mesmo ocorre com Miguel Dutra.

Miguel Arcanjo Benício de Assunção Dutra nasceu em 1812 em Itu. Filho de um ourives negro, foi um artista multifacetado: produziu de esculturas, músicas, ornamentação festiva, arte sacra, desenhos, pinturas e projetos arquitetônicos. Sua habilidade, inteligência e inventividade lhe renderam o apelido de “Leonardo da Vinci cabloco”. Da sua vasta obra, se destacam as aquarelas retratando paisagens, personagens de todos os tipos e cenas cotidianas de imenso valor histórico. Miguel estava com trinta e três anos de idade, no auge de sua forma, quando se dedicou a transcrever o nome de todas as irmãs e irmãos, forros e cativos, que participaram da Irmandade de São Benedito de 1785 a 1835. Seria mero acaso?

Memória, esquecimento e o direito à cidade

A política de memória não é apenas selecionar o que devemos lembrar, mas também o que deve ser esquecido. Se o protagonismo político e econômico de Itu ficou no passado, seu patrimônio histórico e arquitetônico segue servindo ao jogo da dissimulação das hierarquias locais: um processo velado, mas efetivo e violento, de intervenções estatais e relações sociais que perpetuam a segregação racial. Então, cabe questionar: como superar este cenário? 

Lélia Gonzalez nos ensina que para compreender o racismo é preciso reconhecer como ele fragiliza alguns para privilegiar outros. Neste sentido, se é evidente quem perde com o silenciamento da história afro-brasileira ituana, é preciso indagar: quem ganha com o silenciamento? Renato Emerson Santos argumenta que as formas espaciais são o resultado do acúmulo de processos histórico-sociais. Assim, as relações sociais produzem geo-grafias que organizam – ou grafam – as experiências dos indivíduos no espaço.

Logo, devemos pensar como ocorre a organização espacial das relações étnico-raciais, questionando como isso instaura e/ou reforça barreiras e hierarquias. Ou seja, o problema central não é qual a história da cidade que queremos contar, mas como a história que contamos afeta o direito à cidade. Como as políticas de memória – e as de esquecimento – produzem espaços de privilégio e segregação de sujeitos, ou podem conduzir para novos olhares críticos que restituam a diversidade e pluralidade intrínsecas às dinâmicas da cidade, ontem e hoje.

Assista ao vídeo do historiador André Santos Luigi no Acervo Cultne sobre este artigo: 


Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).

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