Em 2024, completam-se 330 anos da destruição do Quilombo dos Palmares, símbolo maior da resistência e capacidade de organização política dos negros escravizados no Brasil. A data da morte de sua última e maior liderança, Zumbi, assassinado em 1695, foi escolhida como o Dia da Consciência Negra — feriado nacional pela primeira vez este ano. Não é uma data apenas comemorativa. Trata-se, sobretudo, de um dia de lembrança, de conscientização e de reflexão. Tudo o que a ele se refere é, pois, político.
A língua de Machado de Assis, de forma distinta de outros idiomas, não possui vocábulos diferentes para a política (disputa pelo exercício do poder) e as políticas públicas (ações governamentais estruturadas, continuadas e legalmente respaldadas). Essa ambivalência pode ser lida como uma positividade quando se aplica à coisa pública — a República, que celebramos semana passada. Afinal, é por meio da política que os grupos negociam e arbitram as políticas que caberá ao Estado implementar, e é também no jogo de poder entre os agentes políticos (representantes e representados, no caso da democracia) que aquelas ações governamentais serão deliberadas, analisadas, impulsionadas ou enfraquecidas.
Essa chave facilita entender como a situação de negros e brancos é tão diferente no Brasil, quase sempre em detrimento dos primeiros, pouco importando o setor, tema ou recorte da realidade que se analise. Com efeito, sua participação na política foi proibida durante 400 dos pouco mais de 500 anos dessa nação “descoberta” em 1500. Mesmo depois da abolição da escravatura, ela teve de ser duramente disputada para que ocorresse, e ainda hoje medidas como as cotas para negros em eleições são desprezadas, e seu descumprimento anistiado por quase todos os partidos políticos. Os marcadores frequentes são a negação e o silenciamento. Aqui, talvez a precisa configuração do mais longevo e exitoso projeto político identitário de nossa história.
Na educação, é possível identificar nitidamente as marcas desse processo histórico em indicadores de acesso, permanência e aprendizagem. Em alguns deles, é importante destacar que até observamos avanços recentes. Por exemplo, o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2024, divulgado pelo Movimento Todos Pela Educação, Fundação Santillana e Editora Moderna, mostra que a diferença no acesso entre brancos e negros vem diminuindo em todas as etapas da educação básica, sendo que, no ensino fundamental, já chegamos a quase 100% de acesso em todos os grupos populacionais. No entanto, indicadores de abandono e reprovação ainda são muito desiguais.
Estudantes negros não apenas concluem o ensino médio em proporções menores que os brancos, mas também apresentam resultados de aprendizagem piores. Dados compilados pela plataforma QEdu revelam que, ao fim do ensino médio na rede pública, 41% dos estudantes brancos apresentam desempenho adequado em Língua Portuguesa e apenas 8% em Matemática. Entre os alunos pretos, essas proporções caem para 24% e 2%, respectivamente; e, entre pardos, para 26% e 4%.
Sabemos de tudo isso há muito tempo, não nos faltam análises empíricas estruturadas. Mas mantemos um sistema político que pouco acesso permite aos grupos vulnerabilizados, e mesmo entre os atores políticos ditos progressistas, imbuídos de suposto compromisso antirracista, seguimos falhando em conferir às políticas públicas a mesma centralidade que a questão étnico-racial tem na formação de nossa sociedade. As mudanças, assim, serão, quando muito, apenas incrementais. Pior, será fácil estancar e fazê-las retroceder, sobretudo diante de forças políticas cada vez mais expressivas e poderosas que negam a existência dessa questão.
Nesse particular, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC dá hoje um passo importante ao tornar público seu painel de monitoramento e avaliação dos eixos da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola. Através de respostas dadas por quase todas as redes públicas do país, será possível identificar como, na ponta, políticas de financiamento, curriculares ou de formação de professores — apenas para ficar em alguns exemplos dessa agenda — estão sendo implementadas pelo país.
Mas a Consciência Negra não pode ficar apenas numa área do MEC ou do governo. Todas as demais políticas, programas e iniciativas têm de dar centralidade estratégica e tático-operacional à questão étnico-racial. Infelizmente, estamos apenas engatinhando, como sociedade, em nossos esforços de transformar a consciência em ação.