Ah, a classe média brasileira! Como dizia Glauber Rocha, “é uma caricatura decadente das sociedades colonizadoras”. O sonho americano frustrado é descarregado nas relações sociais quotidianas com os mais pobres. A busca por privilégios e distinções a torna patética, previsível e cafona. Não me canso de lembrar da frase do desembargador, sem máscara, durante a pandemia que, abordado por guardas municipais respondeu: “cidadão, não, desembargador com contatos”. Bem, o caso hoje é sobre a nossa classe média, tão perto da escravidão e tão longe de compreender o seu lugar na geopolítica mundial.
Valentina é gerente de uma multinacional. Seu marido é chefe em outra. A família é de São Paulo. Ela recebeu uma boa grana de participação nos lucros da empresa, além do salário de 18 mil e aquele de 25 mil do marido. Para trabalhar e viajar, o casal tem uma empregada e babá que, praticamente, precisa dormir no emprego toda semana. Sandra, a doméstica, que recebe um salário de 1400 reais, pediu aumento aos patrões. Valentina respondeu que não podia, pois já assinava a carteira e pagava as despesas do empregador.
Analisemos o caso. O casal, branco, classe média, tem carteira assinada, um bom plano de saúde, ticket refeição e carro da empresa. Fizeram carreira somente porque, na base, no dia a dia, sempre tiveram alguém para trabalhar para eles, recebendo o mínimo estipulado pelo Estado brasileiro. Ora, se o Estado não interferisse, fixando um mínimo para trabalhadores, grande parte dos patrões pagaria 400, 600 reais ou nada, oferecendo apenas comida e quarto, como ainda acontece em muitas casas no Brasil. Esse casal reclama da falta de liberdade do mercado que, segundo eles, deveria reger a vida de todos os trabalhadores. Ora bolas, os dois têm carteira assinada e todos os direitos garantidos, como décimo terceiro, férias e um salário competitivo, o que lhes permite comprar mão de obra por apenas um salário mínimo e, ainda se sentem explorados por assinarem a carteira de Sandra.
Valentina, com as amigas, reclama dizendo que hoje em dia, as domésticas exigem demais, pois não vê esse tipo de trabalho como uma profissão, tanto quanto a sua. Historicamente, as mulheres que passaram pela sua família, vindas do interior, não recebiam salário, afinal eram “quase da família”.
Aqui na França, conheci uma brasileira, advogada, do sul, que chegou recentemente dizendo estar farta do Brasil. A sua primeira reclamação foi com relação à escola francesa pública onde o filho de nove anos iniciou em setembro de 2022. Ela disse: “Não estou gostando da escola, sabe. Eles (professores e funcionários) não são carinhosos com as crianças, não têm aquela atenção como no Brasil”. Perguntei o porquê e ela continuou: “Meu filho caiu durante a recreação e disse que ficou no chão e não apareceu ninguém para ajudá-lo, teve que fazer sozinho”. Fiquei alguns minutos tentando elaborar a história e soube, logo em seguida, que ele nunca havia estudado numa escola pública antes. No Brasil, as escolas particulares são, sobretudo, empresas, onde os clientes pagam e os pais mandam. Para isso, exige-se de professores e funcionários que, além de educadores, eles sejam babás e bajuladores, pois para muitos, o nível de qualidade de uma escola se mede pelo tanto de elogios e mimos que se dedica a uma criança e aos pais, sobretudo de acordo com o nível econômico do cliente. Se essa brasileira tivesse sido socializada na França saberia que uma criança como a sua é capaz de levantar sozinha.
Numa entrevista ao correio braziliense, a atriz Carolina Dieckmann, que mora nos Estados Unidos, disse que aprendeu a lavar privada lá: hoje eu sei que se eu precisar dou conta de tudo, e eu não sabia antes. O que os Estados Unidos lhe ensinaram que o Brasil não conseguiu?
Não é que a mão de obra nos Estados Unidos não esteja disponível. Há muitos imigrantes indocumentados que precisam de trabalho e são explorados pela condição de vulnerabilidade social e legal. É fato que a mão de obra é mais cara se comparada à do Brasil. Mas isto não explica o fetiche da classe média brasileira, que aceita e aprende a limpar banheiro fora e, no próprio país, não. Aí é que entra a Coerção Social, conceito sociológico fundamental para explicar a classe média escravagista brasileira.
Mulheres que vivem no Brasil sentem maior pressão para entrar em padrões de beleza que em países como Alemanha e Áustria, por exemplo. O geral, o que se encontra com maior facilidade, acaba virando regra. Fazer unha toda semana é costume de brasileiras, assim como ter o cabelo “cuidado” sempre. Isso não está escrito em lugar nenhum, assim como a obsessão por cirurgias estéticas, corpos bombados, seios grandes… No entanto, esta pressão, que chamamos de Coerção Social, acaba engolindo os indivíduos. No caso de ter empregadas, para as classes médias, é a mesma coisa. A sociedade, através de leis não escritas, instituiu que, uma família mediana tem que ter alguém para lhe servir no dia a dia. Isso é sinônimo de status, tanto quanto ter um carro. Coerção social é a pressão ou influência que a sociedade exerce sobre o indivíduo, induzindo-o a certos tipos de comportamento, valores e crenças que não são conscientes a ele. É uma lei geral que se impõe através do reconhecimento, recompensa, punição e aprovação social.
Tenho uma prima paulistana, que mora no Campos Elísios que, ao visitá-la certa vez, a ouvi dizer à filha, que estudava direito no Mackenzie: “não criei filha para limpar chão”. Ela contou que a garota se apaixonara por uma colega de classe e a outra estava vivendo em sua casa. Por não aceitar a relação, minha prima impôs à namorada da filha a tarefa de limpar a residência. Certa vez ela flagrou a namorada delegando o trabalho à filha, o que provocou sua raiva e a expulsão da garota.
No Brasil, a escravização contaminou todas as relações sociais e as instituições, inclusive a ideia de trabalho, separando aqueles “dignos” de serem feitos e aqueles a serem delegados. Limpar banheiro é humilhante para grande parte da classe média. Aqui na França, nos grupos de brasileiras, um dos maiores serviços procurados é o de faxineira, mesmo que o apartamento tenha 50m. No Brasil, trabalho não é somente trabalho, o que alguém faz para ganhar dinheiro e sobreviver está ligado ao valor subjetivo da pessoa. Por isso a classe média, mesmo que passe aperto, não dispensa a faxineira, pois, isto é, antes de tudo, forma de agregar valor a si mesma.
Carolina Dieckmann, assim como muitas mulheres brancas, se tivesse crescido em outra parte do mundo, lavaria o próprio banheiro e não esperaria chegar aos 40 para descobrir que é capaz. Nossa configuração social é perversa, pois além de oferecer mão de obra barata para estas mulheres, desvaloriza certas tarefas e profissões. Quando pudermos tocar na estrutura do trabalho e transformar a mentalidade da população, limpar banheiro não será coisa de outro mundo.
Fabiane Albuquerque, é doutora em sociologia e escritora.
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