Tributo por Sueli Carneiro

Quase tudo já foi dito sobre a importância histórica de Leonel Brizola. Mais eloqüente do que as palavras escritas ou proferidas foram as extraordinárias manifestações populares de carinho e apreço ao velho líder que se foi. Ele não tinha um discurso competente ou politicamente correto sobre a questão racial. Ao contrário, algumas de suas manifestações públicas sobre o tema ficaram aquém dos atos concretos e pioneiros que foi capaz de realizar em relação a questão racial. É o caso daquela declaração contra a Rede Globo, em que ele dizia que ‘‘na Globo até preto fica bonito”. Mas, para além de um discurso politicamente correto ou incorreto, prevaleceram os atos de Leonel Brizola em relação aos compromissos por ele assumidos em relação ao combate à discriminação racial, sob influência de seu companheiro de exílio Abdias do Nascimento.

Por Sueli Carneiro

Daí resulta o fato de ter sido o PDT o primeiro partido político a comprometer-se programaticamente com a problemática racial. Já na Carta de Lisboa, de 1979, em que os trabalhistas do exílio anunciam os princípios do novo trabalhismo, do qual o PDT emergirá, é afirmado o compromisso de ‘‘(…) buscar as formas mais eficazes de fazer justiça aos negros e aos índios que, além da exploração geral de classe, sofrem uma discriminação racial e étnica, tanto mais injusta e dolorosa, porque sabemos que foi com suas energias e com seus corpos que se construiu a nacionalidade brasileira”. Essa concepção desdobra-se no quarto compromisso da carta programática do PDT, que define a defesa do negro ‘‘como parte fundamental da luta pela democracia, pela justiça social e a verdadeira unidade nacional. (…) A democracia e a justiça só se realizarão, plenamente, quando forem erradicadas de nossa sociedade todos os preconceitos raciais e forem abertas oportunidades de acesso a todos, independentemente da cor e da situação de pobreza”.
Para além da retórica partidária, esses compromissos se consubstanciarão nas nomeações, para compor o secretariado do primeiro mandato de Leonel Brizola de governador do estado do Rio de Janeiro, da médica negra Edialeda Salgado para a pasta da Educação, de Carlos Alberto Caó para secretário de Trabalho e Habitação. Mais emblemática, ainda, foi a nomeação do coronel Nazareth Cerqueira para Comandante Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

O tamanho dessa ousadia é proporcional às reações por ela provocadas, que estão registradas na pesquisa realizada por Carlos Nobre sobre o coronel Nazareth Cerqueira: um exemplo de ascensão negra na Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Segundo Nobre, ‘‘a surpresa da sociedade civil em relação a Nazareth Cerqueira, em certo sentido, se originava pelo fato de as classes sociais em geral estarem acostumadas em visibilizarem negros como policiais subalternos ou como criminosos (…)”.

Até aquela data, nunca um oficial negro comandara a mais antiga instituição policial, criada por Dom João VI, em 1809, com o nome de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia. Mesmo tendo tido um curriculum impecável na carreira, naquela conjuntura era quase que inimaginável, dentro da estrutura de poder das organizações militares, que um oficial negro pudesse comandá-la”.

Entre os depoimentos colhidos pelo pesquisador, ressalta-se a de um oficial sobre o impacto da nomeação de Nazareth Cerqueira naquela corporação. Diz ele: ‘‘Quando Nazareth Cerqueira assumiu o comando da Polícia Militar, no primeiro governo Leonel Brizola, houve reação. Lá embaixo, nos recônditos mais distantes da tropa, comentava-se assim: porra, um crioulo comandando, isso não vai dar certo. Como pelo fato dele ser negro, a PM estaria fadada ao insucesso por não ter um comandante branco. Eu lembro que havia pessoas que diziam assim: olha, pode acreditar, se não fizer na entrada, vai fazer na saída. Quando o coronel Jorge da Silva assumiu o Estado-Maior, eles comentaram: porra, agora é dose dupla (…). Houve rejeições pela presença de Nazareth Cerqueira no comando, mas depois elas se tornaram quase nulas diante do trabalho que ele realizou na tropa”.

Eram os idos de 1983. Estávamos longe do tempo das ações afirmativas, cotas ou das desigualdades raciais presentes no debate nacional. Ao contrário, havia ainda a louvação do mito da democracia racial a despeito das persistentes denúncias dos movimentos negros. Nesse contexto, a militância negra do Rio de Janeiro, sob a liderança de Abdias do Nascimento, soube sensibilizar o velho e querido caudilho para empreender esses gestos pioneiros de rompimento com a histórica exclusão dos negros das instâncias de poder.

Do encontro desses dois gigantes, Leonel Brizola e Abdias do Nascimento, emergiu o patamar mínimo requerido desde então para que a vontade política de transformação das relações raciais assimétricas se realize, para além da retórica, ou dos gestos simbólicos, em ação política concreta de inclusão da diversidade racial nas instâncias de poder. Durma em paz, Brizola.

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