Ao criar medidas protecionistas e impedir os fluxos da globalização do capital, ele se coloca em dissensão com o sistema estabelecido
Por Pedro Estevam Serrano, da Carta Capital
Foto: Reuters/Kevin Lamarque
Em artigo anterior, defendi que o potencial nocivo do governo de Donald Trump não deveria ser subestimado. Mal esquentou a cadeira da Presidência e, com uma canetada, proibiu a entrada de viajantes de oito nacionalidades – países com predomínio de população muçulmana – em território americano. Sem qualquer pudor, baniu também a recepção de refugiados sírios, que estão no centro de uma tragédia humanitária.
Ao assumir um discurso anti-humanista que abdica de qualquer resquício da moralidade própria da vida democrática concebida desde o século XVIII, o novo presidente americano representa, talvez, a maior ameaça concreta à civilização advinda do poder estatal, hoje, no mundo.
Trump, de fato, não se peja em criticar valores próprios de uma vida humanística – solidariedade, empatia, igualdade. Mas não é exatamente por isso que o aparato midiático do mundo inteiro se volta contra ele. Essa onda crítica a Trump, supostamente erguida por uma motivação humanitária, atende primeiramente aos interesses daqueles que dirigem a nova fase do capitalismo que estamos vivendo.
Para justificar essa afirmação, me baseio na leitura de um dos mais brilhantes teóricos sobre o pós-colonialismo, o camaronês Achille Mbembe, pensador contemporâneo que possui a erudição, a qualidade e a originalidade da teoria bem construída de valor universal. O autor de Crítica da Razão Negra avalia com precisão aquilo que ele vê como o principal choque da primeira metade do nosso século, caracterizado pela “crescente bifurcação entre a democracia e o capital”. O casamento entre democracia liberal e capitalismo neoliberal, que teve uma aliança produtiva para a humanidade até certa medida, está chegando ao fim.
E Trump, pode-se dizer, é ao mesmo tempo sintoma e uma espécie de “acidente de percurso” de um problema muito mais complexo do neoconservadorismo. Ele é símbolo da radicalização desse caráter autoritário assumido pelos Estados em decorrência do processo neoliberal, que produz uma tensão crescente com o livre mercado. E é isso que realmente incomoda a elite mundial. A elite mundial não está preocupada com o autoritarismo, mas com o que deriva desse autoritarismo agora que o processo deixa de ser paulatino e se acentua.
Havia, até então, um certo equilíbrio entre os três principais alicerces que compunham o modelo de neoliberalismo vigente: o setor financeiro, o capital tecnológico e o aparato militar. O primeiro, garantidor do ganho de capital pela mera reprodução do capital, passando, a partir da década de 70, a ser o centro dirigente da economia, capilarizando e espalhando seus efeitos por toda economia de mercado. O segundo, responsável por formar novas consciências e, assim, uma nova subjetividade humana. E o terceiro, um braço importante dessa engrenagem, concebido para “resolver” um problema que esse modelo criou – o caos social gerado pela absurda desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres. Uma solução violenta, obviamente, que subtrai direitos de grande parcela da população, não coincidentemente, aquela que não é útil para o sistema econômico.
“Trump é símbolo da radicalização desse caráter autoritário assumido pelos Estados em decorrência do processo neoliberal”
As forças militares dos grandes países deixaram de ser, na contemporaneidade, forças de proteção territorial e da soberania nacional para se tornarem força de polícia do mundo, ou seja, um instrumento a serviço da governabilidade mundial gerida pelas grandes corporações. Um dos principais aparatos dessa força é justamente o Estado americano, que alimenta uma grande potência do capitalismo sob o amparo da ideia de segurança nacional. A maior parte de seu orçamento, que, diga-se de passagem, não é submetido a quase nenhum controle, é destinada à industria militar e à tecnológica, o que significa uma imensidão da atividade econômica alimentando-se de verbas públicas.
Quando esse Estado, sob a batuta de Trump, começa a produzir atos econômicos que visam estabelecer mecanismos protecionistas e impedir os fluxos da globalização do capital, ele se coloca em dissensão com esse sistema estabelecido.
Isso delineia um novo campo de tensão. Não se trata mais da tensão entre capitalismo e democracia liberal, como vinha acontecendo, mas entre Estado e mercado, conforme destacado por Mbembe. Observemos que essa mesma mídia que hoje se contrapõe a Trump não conflitou com governantes anteriores a ele, os quais também praticaram e estimularam mecanismos de morte de parcela da população pobre por conta dos interesses sistêmicos do capital.
Essa ameaça civilizatória – Mbembe fala com razão – tem submetido uma parcela enorme da humanidade à condição semelhante à do escravo negro no ocidente. Para o pensador, as perspectivas de um devir-negro do mundo nunca foram tão gritantes. Não se trata aqui do escravo no sentido jurídico do termo, mas de uma “humanidade subalterna”, de uma existência submetida a grandes ameaças cotidianas, seja pela ação do Estado que age como senhor de escravos, seja pelo processo de exclusão econômica e pela perda de direitos sociais e trabalhistas.
Não é a tensão entre capitalismo e democracia liberal, mas entre Estado e mercado (Bryan Smith/AFP)
A ideia de desemprego como reserva de mão de obra, tal como concebida por Marx, está completamente desatualizada. A função da população excluída do ciclo econômico não é mais baratear o salário de quem trabalha, até porque a própria noção de trabalho tem sido flexibilizada ao extremo, com o claro intuito de justificar sua crescente precarização. A ideia do empreendedorismo como solução para o desemprego, largamente vendida pela mídia, faz parte desse processo de esfacelamento das relações de trabalho, tais como concebidas pelo Estado Social.
E além dos precarizados, que vendem sua força de trabalho sem qualquer tipo de proteção, há ainda um grande contingente populacional sem nenhuma função econômica e, portanto, sem lugar no mundo. Essa equação que não fecha tem sido “resolvida” pelo neoliberalismo por meio da eliminação física, que ocorre de várias formas, como por exemplo, pelo fenômeno do encarceramento em massa, retirando parte dessas pessoas do convívio social, sob o discurso de aplicação do direito penal. Cada vez mais se acredita na necessidade de um Estado militar ou policial como solução para administrar o problema da brutal desigualdade social e dessa fração da humanidade que “sobra”.
“Cada vez mais se acredita na necessidade de um Estado militar como solução para administrar a brutal desigualdade social”
Pela primeira vez na história estamos diante da possibilidade de termos um enorme contingente humano geneticamente não originado na África “vivendo” sob essa situação de radical submissão. Pela primeira vez, pessoas de todas as nacionalidades, com a característica comum de serem excluídas do mercado de consumo, estarão sujeitas à perda da condição humana e passarão a ser tratadas como seres passíveis de apropriação.
A conduta de Trump e asseclas é, portanto, o sintoma mais eloquente de um fenômeno que atravessa toda a sociedade ocidental e que já estava servindo de pressuposto, embora não declarado, a um sistema político e econômico que vem se instalando no mundo desde o fim da década de 70 e começo dos 80.
Ele é a declaração de um novo momento na história da humanidade, uma era em que milhões de seres desprovidos de qualquer proteção jurídica, política e social serão tidos como meros objetos da vontade do soberano econômico e do soberano estatal. Uma era em que humanismo estará gravemente comprometido, colocando em risco o próprio conceito de civilização.