Um guia para entender o que é violência obstétrica, como denunciar e combater a prática

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Em maio, Ministério da Saúde emitiu despacho em que orientava que a expressão fosse evitada em diretrizes e dados de políticas públicas.

Ana Ignacio no HuffPost

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O termo já é usado há anos e oficializado no Brasil há quase uma década para designar um tipo de violência contra a mulher, que acontece no momento do parto. Mas, recentemente, foi ameaçado. Em despacho oficial publicado em maio deste ano, o Ministério da Saúde orientou que a expressão fosse evitada e, possivelmente, abolida de documentos de políticas públicas do governo.

Segundo o MS, “a expressão ‘violência obstétrica’ não agrega valor e, portanto, estratégias têm sido fortalecidas para a abolição do seu uso com foco na ética e na produção de cuidados em saúde qualificada”.

À época, o despacho também afirmou que “tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano” à mulher grávida e, portanto, não se deve falar em práticas de violência. Ministério disse que trabalha para “qualificar a atenção ao parto e nascimento”.

No entanto, após movimentação de organizações, especialistas, ativistas e grupos de defesa de direitos humanos e das mulheres, a pasta voltou atrás em parte de seu posicionamento e disse reconhecer o uso do termo por mulheres.

A violência obstétrica atinge uma em cada quatro mulheres brasileiras, de acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, de 2014, coordenada pela Fiocruz. A seguir, o HuffPost Brasil explica o que é este tipo de violência, como ela pode se manifestar e o que é possível fazer para combater casos desse tipo.

O que é violência obstétrica

Agência Brasil

Definição aceita pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e pela Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) trata-se de uma violência sofrida por uma mulher durante o pré-natal, parto ou pós-parto.

A advogada Ana Lúcia Keunecke, integrante da Rehuna (Rede pela Humanização do Parto e Nascimento), destaca que a violência obstétrica pode ser praticada por diversos profissionais relacionados ao atendimento da mulher.

“Não só médicos, mas pode ser enfermeiros, o recepcionista do hospital. Toda ação que interfira na autonomia da mulher, na perda de decidir sobre os seus processos fisiológicos é reconhecida como uma violência obstétrica”.

Braulio Zorzella, médico obstetra, explica ainda que por se tratar de situações exclusivas às gestantes, a violência obstétrica é considerada de gênero.

É um termo que não é só brasileiro e existe em vários países.Braulio Zorzella, médico obstetra

“É uma violência de gênero contra uma mulher grávida sofrida no pré-natal no parto ou no pós-parto, incluindo situações de aborto também. É um termo que não é só brasileiro e existe em vários países”.

Para o médico, levando em consideração que o melhor parto possível é aquele que reúne a melhor segurança possível baseado em evidências científicas, aliado a uma equipe transdisciplinar e ao protagonismo da mulher em relação às decisões do que vai ser feito, qualquer ação que fira algum desses três pontos é considerada uma violência obstétrica.

“Ferir a autonomia da mulher é uma violência obstétrica, ferir as evidências científicas é uma violência obstétrica e se tiver uma equipe incompleta é uma violência obstétrica”, pontua.

Como a violência obstétrica se manifesta

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De acordo com os especialistas, existem violências mais e menos graves e a violência obstétrica pode ocorrer de várias formas, sendo física, verbal ou psicológica.

“A violência é fazer uma cesariana? Não. Agora, se a cesariana está sendo feita com uma justificativa de que a mulher tem um problema no corpo, ou não tem dilatação, mas não esperou que ela entrasse em trabalho de parto, por exemplo, aí sim”, diz a advogada.

“Nem toda intervenção é violência obstétrica. Se o profissional explicou antes e fez explicando e entendeu que era o último recurso, não necessariamente é violência”, completa.

Veja abaixo alguns exemplos de violências obstétricas, de acordo com informações de cartilha publicada pelo Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

– Ter o direito ao acompanhante negado (desde 2005, a mulher tem direito, por lei, a ter um acompanhante durante o parto, independentemente do tipo de procedimento)

– A realização de intervenções no corpo da mulher sem que elas sejam explicadas e sem que haja o consentimento dela como a realização de episiotomia (corte realizado na região do períneo para ampliar o canal de parto) de maneira indiscriminada e sem indicação clínica ou a retirada dos pelos pubianos

– Comentários constrangedores à mulher por sua cor, raça, etnia, idade, escolaridade, estado civil ou situação conjugal, orientação sexual, número de filhos, assim como ofensas, humilhações ou xingamentos

A violência é fazer uma cesariana? Não. (…) Nem toda intervenção é uma violência obstétricaAna Lúcia Keunecke, advogada

– Ausência de hidratação ou alimentação da mulher durante o trabalho de parto

– A proibição de se levantar e de se locomover durante o trabalho de parto, assim como obrigar a mulher a permanecer em uma mesma posição

– Pressão sobre a barriga para empurrar o bebê (manobra de Kristeller)

– Agendamento de cesárea sem a devida recomendação clínica e sem consentimento da mulher

– Atendimento de saúde no pré-natal sem acolhimento às necessidades e dúvidas da gestante

Como denunciar e combater este tipo de violência

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Em casos em que a mulher se identifique como vítima de violência obstétrica, ela pode realizar denúncias no MPF (Ministério Público Federal) pela internet (podendo denunciar tanto o hospital ou instituição como o profissional que a violentou).

Além disso, ela pode procurar a ouvidoria do hospital, fazer denúncia no SUS em casos de atendimentos no sistema público de saúde, à ANS em casos de saúde suplementar (convênios) e na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Ana Lúcia explica que a Anvisa determina a ambientação que todo o hospital tem que ter para um parto, seguindo as melhores práticas das evidências médicas: sala de pré-parto, acesso a chuveiro, direito a um acompanhante, por exemplo.

“Não fornecer este tipo de acolhimento é uma infração da vigilância sanitária. O hospital pode ser multado e/ou perder o direito de receber verbas públicas, por exemplo”, diz a advogada.

Além dessas medidas administrativas, em que não há reparação para a mulher, é possível buscar um advogado e entrar com ações de reparação. No entanto, ainda há dificuldade de denunciar e até de se identificar como vítima.

Mas ainda assim muitas se calam, como a mulher vítima de violência sexual.

Segundo Zorzella, é possível dizer que se trata de uma situação subnotificada. De acordo com pesquisa coordenada pela Fiocruz em 2014, 1 em cada 4 brasileiras sofreram violência obstétrica, mas estima-se que este número seja maior do que o retratado pela pesquisa.

“Essas que relataram são uma parcela daquelas mulheres que identificam que foram violentadas. Mas ainda assim muitas se calam, como a mulher vítima de violência sexual”, pontua o médico. “Elas demoram para falar, tem medo do sistema e entre aquelas 3 que não relataram, com certeza tem mulheres que sofreram sem saber que é violência porque acham que é normal”, pontua.

“A dificuldade do lado da mulher é encontrar lugares para se defender e identificar que aquilo foi uma violência obstétrica”, explica Zorzella.

Uma questão que ainda é desafio para a medicina

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Há ainda uma discussão importante sobre a situação dos profissionais envolvidos nos partos que ajuda a explicar por que isso acontece e que pode dar alguns caminhos para melhorar. Segundo Zorzella, os profissionais da saúde sofrem uma violência institucional que, muitas vezes, pode refletir na violência obstétrica.

“O fato de um médico estar em um plantão com 10 partos ao mesmo tempo, por exemplo. É uma violência contra ele que muitas vezes pode refletir em uma violência obstétrica contra a mulher”.

Ele explica ainda que há visões diferentes sobre o assunto na área.

“[Existe] uma parte daqueles que são bem intencionados e não gostariam de praticar violência obstétrica. Então se o médico trabalha em um hospital que tem falta de pessoal, já está ferindo um ponto. Se ele está em um lugar com protocolos atrasados e ele é obrigado a seguir esses protocolos senão ele é punido, isso vai refletir em violência obstétrica e isso acontece muito no Brasil: falta de estrutura e protocolos desatualizados”.

O mesmo acontece com profissionais de convênios médicos que recebem um valor único para partos, não importando o tempo e tipo de procedimento.

“Ele ganhar a mesma coisa se ele fizer uma cesárea marcada ou se ele ficar 18 horas acompanhando um parto que ele não sabe que dia vai acontecer, é uma violência laboral contra ele que muitas vezes reflete em violência obstétrica na mulher porque ele vai lá e marca uma cesárea. Não estou dizendo que ele está certo em fazer isso, mas estou dizendo qual é a dificuldade”.

Isso vai refletir em violência obstétrica e isso acontece muito no Brasil: falta de estrutura e protocolos desatualizados.

Além disso, há profissionais que não consideram que exista violência obstétrica.

“Muitas vezes esses médicos praticam a violência obstétrica sem saber que é uma violência, estão desatualizados a temas e inclusive falam, por exemplo, que tem que fazer episiotomia para não emendar a vagina com o ônus da mulher”, aponta o profissional.

A episiotomia é uma incisão efetuada na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto e também “ajudar” o bebê a nascer. O procedimento também vem acompanhado do chamado “ponto do marido”, que é “um ponto a mais” feito no fechamento da incisão com o objetivo de deixar a vagina mais fechada que o necessário e, assim, proporcionar prazer ao homem durante próximas relações sexuais.

“Este é um procedimento que foi inventado no século 18 para prevenir lacerações que aconteciam porque faziam a chamada manobra de Kristeller, que é essa de ‘empurrar a barriga’, e forçar muito mais o períneo da mulher. E esse corte pode acontecer. Agora, muitos médicos não sabem de onde veio. Aprendem que tem que fazer e passam a fazer”, diz Zorzella.

Ana Lúcia também pontua que a situação de trabalho dos profissionais de saúde é difícil e por isso destaca a importância da presença de uma equipe multidisciplinar na hora do parto. “Para que o médico chegue só para fazer o parto e doulas, parteiras, enfermeiras possam fazer outras etapas”, explica.

É possível evitar a violência obstétrica

Para ajudar a evitar e combater esse tipo de violência, orienta-se que as mulheres busquem informações e que realizem o chamado plano de parto.

Recomendado pelo OMS, ele é um documento simples em que a mulher manifesta suas vontades, preferências e decisões em relação ao parto.

Além de servir como uma espécie de guia para a equipe médica, pode ser usado como prova e auxílio em caso de violação e possíveis processos.

“Melhor caminho é informação, pré natal, uma equipe multidisciplinar onde cada um tem um papel complementar e um respeito a sua individualidade”, define Ana Lúcia.

Para mais informações sobre o assunto, as mulheres podem acessar o Nudem (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher) para ler cartilhas, saber sobre plano de parto e buscar profissionais especializadas na área.

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