Um olhar sobre as mulheres negras e o ensino superior no Brasil

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Se é factual que a política das cotas raciais colocou em outro patamar a discussão do acesso ao ensino superior pela população negra, também é verdade que há muito ainda a ser discutido. Desigualdades de gênero, para além das ditas inequidades raciais, marcam o acesso, permanência, fluxo e desempenho em todos os níveis da educação nacional. Sabendo que as mulheres negras são vítimas do preconceito tanto sexista quanto racista, vale a pena se debruçar sobre a situação dessa importante parcela da população no tocante o acesso ao ensino superior – etapa que se encontra ainda bastante elitizada e pouco acessível aos grupos de maior vulnerabilidade social.

Do Ensaios de Genero

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É cabível retomar algumas sentenças que temos reiteradamente afirmado neste blog: (1) o Brasil é um país cuja população é composta de uma sutil maioria negra (pretos + pardos) e feminina de, respectivamente, 50,74% e 51,03%, segundo o último Censo Demográfico do IBGE; (2) essa constatação não presta à função de exigir “privilégios” a determinados segmentos da população, senão de denunciar que são majoritários no país grupos considerados minoritários em termos de direitos, poder e reconhecimento; (3) as desigualdades de gênero e de cor/raça persistem em diversas esferas da vida social, política e econômica (mercado de trabalho, violência, representação política etc). Com a educação, não é diferente. Ou é. Veremos

A educação pública no Brasil, a reflexo do próprio Estado brasileiro, não tem lá um passado muito agradável de se contar. Escolas segregadas por sexo marcaram os primórdios da escolarização no Império, a escravidão alijou da esfera educacional a população negra, o poder público comprometido com as oligarquias fez pouco caso da democratização do ensino, uma educação dual (intelectual para a elite, mecânica para pobres) atravessou o século passado inteiro. Pior, essas desigualdades deixaram marcas profundas no sistema educacional da atualidade. Ainda pior, as mudanças não têm sido sempre movidas pelos ventos mais promissores.

Em capítulo recentemente publicado no Dossiê Mulheres Negras do IPEA, Edilza Sotero (2014) nos recorda que o ensino superior no Brasil tem crescido sobretudo pelo setor privado. De fato, discutimos em texto anterior que são as faculdades particulares as principais responsáveis pela absorção de segmentos do povo brasileiro que nunca tiveram acesso a esse nível de ensino. Para além das políticas de cotas, outras medidas como o ProUni e o FIES tiveram impactos não apenas sociais, como também raciais e de gênero – isto deve ser explorado em um futuro texto. A expansão do sistema privado de ensino, portanto, acabou por cobrir uma lacuna do sistema público que, apesar do aumento no número de matrículas, ainda está muito aquém de atender as demandas dessa imensa população que o país abriga.

Essa realidade aponta, nas palavras da autora supracitada, para a presença de “relações hierárquicas reproduzidas no interior do sistema educacional” (p. 36), na medida em que a ampliação do acesso à educação se faria não de modo igualitário, e sim acompanhado por um processo de diferenciação de origem social em relação ao tipo de ensino/instituição frequentado pelos/as estudantes Brasil adentro. E, de fato, a persistência das desigualdades caracterizam mesmo os avanços que obtivemos nesse quesito nas últimas décadas. Pelo gráfico abaixo, notamos com facilidade que a expansão do ensino superior não exatamente solucionou disparidades históricas.

Evolução nas taxa líquida de escolarização, por sexo e cor/raça – Brasil, 1995 a 2009 (Elaborado por IPEA e extraído de Sotero, 2014)

Cabe destacar que a figura acima se refere às taxas de escolarização para estudantes do nível superior. A tal taxa líquida se refere à população matriculada no nível de ensino esperado para a sua idade – no caso, jovens de 18 a 24 anos que frequentam alguma instituição de ensino superior. Valores tão baixos para a população toda, em especial para mulheres e homens negros, sugerem que há muitos jovens nessa faixa etária que não estão estudando. Além disso, indicam que pode haver mulheres e homens negros mais velhos que, só agora, obtiveram acesso a alguma faculdade/universidade (estes, por sua vez, não estão contabilizados no gráfico porque não preenchem os quesito da taxa líquida de escolarização).

As desigualdades de gênero, embora menores que as raciais, deixam a sua marca nessas taxas de escolarização, de forma que as mulheres negras têm alcançado maior escolarização se comparada aos homens negros. Reforçando essa tendência, as hierarquizações estão claras, para usar o termo relembrado por Sotero (2014), no sistema educacional. No gráfico abaixo, percebemos que o ensino superior brasileiro é composto majoritariamente por mulheres brancas, seguidas dos homens brancos e, só depois, pelas mulheres negras. É evidente que a questão socioeconômica tem um peso crucial aqui, ajudando a entender por que as desigualdades raciais, com todo o histórico processo de escurecimento da pobreza ou pauperização dos negros. Porém, não são suficientes – tal como abordamos em outro texto.

Proporção de estudantes no ensino superior, por sexo e cor/raça – Brasil, 2003 e 2009 (Elaborado pelo IBGE e extraído de Sotero, 2014)

Por fim, realço que este texto foi apenas um leve apanhado que procurou caracterizar alguns aspectos das desigualdades de gênero e cor/raça, aproveitando a recente publicação do IPEA. Para continuar o debate sobre a Educação Básica (a base, afinal, para se entender as disparidades que os gráficos acima bem ilustraram), recomendamos a série de textos anteriormente publicada, a qual pode ser acessada pelo seguinte artigo: Desigualdades de gênero e cor/raça na Educação Básica no Brasil.

 

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