“Os candidatos precisam compreender melhor as relações raciais no Brasil, as lutas das últimas décadas, as políticas em discussão. Há uma enorme violência contra mulheres, crianças e jovens em geral, mas em particular contra os jovens negros. A começar pela violência cometida pela polícia, algo assustador: eles matam muitos dos nossos meninos, são quase todos negros… como se cria a idéia de que alguém é suspeito e alguém está fora de suspeição? Como se construiu este monstro, o jovem negro?”.
Cida Bento, 58, doutora em Psicologia Social pela USP é diretora do CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, entidade que fundou há 20 anos ao lado de Hédio Silva Junior (ex-secretário da Justiça de São Paulo) e Ivair Augusto (hoje na Secretaria Nacional de Direitos Humanos). Entre outros projetos do CEERT, impressiona o fôlego e os resultados do Prêmio Educar Pela Igualdade Racial (já em sua quinta edição), que soma nada menos que mil e oitocentas experiências de sala de aula, em todos os estados, inclusive com alunos na faixa de 0 a 6 anos.
“Algo bonito no Prêmio Educar é que quase metade das experiências é realizada por professoras brancas, sem dinheiro do Estado, sem apoio das escolas… o branco pode ser um protagonista essencial neste processo de re-significar as relações raciais!” – diz Cida, convidada deste domingo para encerrar esta série Eleições & Sociedade Civil – na qual fizemos de breves conversas com lideranças sociais sobre o processo eleitoral.
Pergunto a Cida sobre as chamadas políticas afirmativas, que geram controvérsias e debates que, se bem acompanho, parecem carregados…
“Alguns dizem que as políticas afirmativas criam racismo…”, diz Cida Bento. Completa: “… por que no Brasil foi construído o mito da democracia racial. A ideologia dominante quer colocar o tema como uma questão apenas social – o que é uma saída de emergência que conforta o privilégio de ser branco. Ocorre, entretanto, um grande processo de mudança quando o branco vê isso… amplia a consciência. Não é fácil, demora, mas a pessoa vai mudando progressivamente.”
Por seu olhar quanto ao papel do branco no processo de percepção e mudança das questões raciais, Cida Bento acaba de embarcar para a Universidade do Texas, onde ficará 5 meses realizando “Branquitude e Poder no Brasil” – uma análise comparativa, referenciada na África Sul, Estados Unidos e América Latina.
“Trabalham com foco no negro 96% do estudos. Estou me dedicando às relações raciais com foco no branco. Trabalhar com um olhar focado nestas sociedades pode mudar um certo eurocentrismo acadêmico” – diz a diretora do CEERT.
A questão racial, o papel da sociedade civil… como você vê a presença destes temas na campanha eleitoral?
“A CUFA – Central Única de Favelas (Rio de Janeiro) vem fazendo uma aproximação destes temas com os candidatos e acho muito legal quando a sociedade chama e provoca posicionamento, ampliando a consciência. Sinto falta de que outras organizações também participem mais ativamente da oportunidade de debater o país; oportunidade que as eleições, em princípio, oferecem. Há certo diálogo com os candidatos e os partidos em torno de temas como negros, mulheres, mas não há repercussão, não há visibilidade”, diz Cida.
Agora, em tempo de eleições, mas também de forma habitual, como a mídia se comporta diante da questão racial?
Cida alerta: “A mídia ajuda a manter quando poderia ajudar a mudar. Pior: vejo que esta postura é uma ação organizada. Um exemplo? O CEERT assessora um trabalho da FEBRABAN – Federação Brasileira de Bancos, o projeto “Valorização da Diversidade”. Não é pouca coisa, pois ali estão diretores dos maiores bancos, ministros… é um trabalho que envolve a inclusão de mulheres negras e a seleção de jovens negros. Foi realizado um censo com cerca de 200 mil funcionários, com apoio técnico do IPEA, do Ministério Público, da Contraf/CUT e do IBGE, observando cargos, salários, políticas de promoção, mas você não vai acreditar se eu disser que jamais houve qualquer matéria significativa na imprensa”.
É mesmo difícil de acreditar… (ver www.febraban-diversidade.org.br/mapadiversidade/index2.asp)
“Há 6 anos” – diz Cida com certo pesar – “não assisto canais comerciais de televisão e não leio jornais. Me fazia tanto mal, me dava tanta impotência… É dor, é mais que irritação, é saber que aquilo vai progredir… Os brancos precisam encontrar outro lugar nas relações que estabelecem ”.
O que você gostaria de conversar com os candidatos?
Cida Bento gostaria de ouvir deles um balanço, digamos, sobre o que tem sido a participação da sociedade civil nos últimos anos: “Como, por exemplo, cada um deles avalia a contribuição das conferências setoriais sobre as políticas públicas”. Diz ainda: “Gostaria de saber dos candidatos como aumentar a incidência política das organizações que vivem as realidades sociais há décadas; e, como governo e sociedade podem seguir aprendendo a dialogar”.
Lembro a Cida que Paulo Freire, o educador, disse certa vez que num país como o Brasil manter a esperança viva é em si mesmo um ato revolucionário. E pergunto: como você reinventa a esperança no Brasil?
Cida Bento: “A gente sempre esbarra na desesperança, mas este é um país que encontra caminhos, que tem riqueza nas suas contradições e no afeto que transita entre nós – mesmo que violência também transite entre nós. Vamos criar sim uma nova relação ente brancos e negros, aí também há terreno fértil para uma nova realidade”.
*Conheça mais sobre o CEERT, ong dirigida por Cida Bento que combina produção de conhecimento com programas de treinamento e intervenção comprometidos com a igualdade de oportunidades e com a superação do racismo, da discriminação racial e de todas as formas de discriminação e intolerância. Com uma equipe de psicólogos, advogados, educadores, sociólogos e assistentes sociais, o CEERT presta consultorias a empresas, prefeituras e órgãos públicos interessados em implantar políticas de valorização da diversidade e de promoção da igualdade racial. (www.ceert.org.br)
Fonte: O Globo