Um quilombo político possível

Iniciativas dos movimentos negros e de mulheres negras tornam possível uma outra cultura política

FONTEFolha de São Paulo, por Maíra Vida
Quilombolas de várias regiões do Brasil fazem marcha em defesa de seus direitos em frente ao Congresso Nacional, em Brasília - Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

São um atrevimento e um privilégio negro a memória e as lutas do presente que expressam a experiência de existência e resistência coletivista, inclusiva e solidária dos quilombos no Brasil. Quilombo é tanto o módulo de resistência que dá musculatura ao movimento de rebeldia permanente e organizada da quilombagem, como diz Clovis Moura no livro “História do Negro Brasileiro”, como, também, território político de sociabilidade disruptiva, diverso e complexo, nutrido por ética, afetividade, justiça e equidade, alicerçado em formulações pragmáticas de bem-viver e responsabilidade comunitária.

Tanto libertário e altivo quanto habilidoso politicamente para seguir em paralelo ao paradigma dominante, o quilombo sustenta a preservação do conjunto de saberes e fazeres comunitários ancestrais enquanto incide engenhosamente no Estado, compelindo as instituições a um deslocamento em direção ao reconhecimento de humanidade e cidadania dos que estão fora da métrica da universalidade.

Conflitos e contradições existem nos quilombos, pois a similitude comunitária não é sinônimo de uniformidade: há sólida compreensão da pluralidade de indivíduos e de coletividades. Os conflitos presentes em toda composição social heterogênea proporcionam crescimento do quilombo, pela afirmação de outras formas organizativas de cultura política, que aproveitam o conjunto tenaz de potencialidades reunidas. O aprofundamento das relações nos desafiará a permanecer e a seguir até onde deveríamos estar, não fosse pelo racismo. A gente se amplia em movimento, se desenvolve, atrita e repactua quando necessário.

O quilombo é um lugar para não esquecer que as opressões que sofremos na base da categorização social são frentes de lutas inseparáveis e que nossas jornadas, ainda assim, podem ser vibrantes e emancipatórias, se enquanto indivíduos e coletividades nos comprometermos a sermos “acendedores de sóis” uns dos outros e do nosso povo, como ensina Aza Njeri.

A iniciativa Quilombo nos Parlamentos é uma caixa amplificadora, melhor dizendo, um grande paredão para expandir a participação, o alcance e o poder decisório de nossas vozes, vozes negras, na vida política de nossas cidades, estados e país.

O voto antirracista é o voto que muda as regras do jogo e mexe com a flagrante e constrangedora predestinação artificial de candidaturas que representam o poder econômico, branco, masculino, cisgênero, heteronormativo, conservador, religioso e territorializado.

O voto antirracista é o voto em lideranças e representantes dos movimentos negros cuja tradição nos trouxe até aqui vivas, como destacaram Vilma Reis, candidata a deputada federal (PT-BA) e Douglas Belchior, candidato a deputado federal (PT-SP), no encerramento do lançamento da iniciativa Quilombo nos Parlamentos, quando foram apresentadas mais de cem candidaturas negras de todo o país.

É possível contribuir para a mudança da fotografia do poder, como propôs Milton Santos, o que implica a própria reorganização do poder e transformação compulsória dos espaços de poder pela presença de pessoas negras ativistas e comprometidas com pautas afirmativas, especialmente mulheres negras, que seguem escandalosamente sub-representadas em todos os parlamentos.

Por meio de iniciativas dos movimentos negros e de mulheres negras, que vêm estimulando e subsidiando intelectual e materialmente novas metodologias e práticas políticas, será possível uma outra cultura política, marcada por coletivismo e horizontalidade, suprapartidária, e comprometida precipuamente com a equidade racial e de gênero. Em um país submerso em ódio racial e autoritarismo, oxigenamos a disputa eleitoral.

Por um Brasil livre, justo e solidário, por uma democracia que respeite todo o povo brasileiro, como um quilombo, nós faremos Palmares de novo. Para isso, precisamos de oportunidades. Sem aquilombamento político e uma bancada dirigida pelos movimentos sociais negros e de mulheres negras, continuaremos a ter poucas chances. A maré vai subir e vamos subir com ela!


Maíra Vida

Advogada, professora, integrante da Coalizão Negra por Direitos, cofundadora do Aganju (Afrogabinete de Articulação Institucional e Jurídica) e coordenadora do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela/Sepromi

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