Um Rio Negro. Escravidão e Liberdade no Rio de Janeiro do século XIX

O Rio de Janeiro foi a maior cidade escravista das Américas. 

FONTEPor Ynaê Lopes dos Santos, enviado para o Portal Geledés

A leitura desta frase pode causar certa estranheza para quem conhece o Rio de Janeiro apenas pelos cartões postais. Para os que possuem um pouco mais de conhecimento sobre a dinâmica da cidade, esta frase pode ser um lastro histórico que explica a forte presença da população negra nos dias atuais, bem como o recente reconhecimento do Cais do Valongo como Patrimônio Histórico da Humanidade.

Todavia, por trás do título pouco honroso adquirido ao longo do século XIX, existem diversas relações econômicas, escolhas políticas e ressignificações sociais e culturais que, infelizmente, não costumam ser ensinadas em sala de aula. No século XIX, o Rio de Janeiro foi uma cidade negra, uma cidade de escravizados, de libertos e livres. Uma cidade na qual era possível ver o peso da escravidão, ao mesmo tempo em que novos sentidos de liberdade eram constantemente tecidos.

O Rio de Janeiro já tivesse uma população escravizada expressiva nos séculos XVII e XVIII. Contudo, foi apenas a partir de 1808, com a transferência da família real portuguesa, que o número de escravizados cresceu a olhos vistos. Não seria exagero afirmar que homens e mulheres vindos de diferentes localidades do continente africano na condição de escravizados foram a mão-de-obra a viabilizar toda a transformação na malha urbana da cidade, fazendo com que a antiga capital do Vice Reino se transformasse na Corte do Império Português. 

Com a Proclamação da Independência em sete de setembro de 1822, o Rio de Janeiro foi alçado ao posto de Corte do Império do Brasil. Ali vivia e se reunia boa parte das elites políticas que controlavam o país. Elites, vale dizer, compostas majoritariamente por proprietários de escravizados. Sendo assim, o peso político que a cidade ganhou em 1808 foi confirmado em 1822. E o peso da escravidão também.

Como não existem coincidências em História, não foi por acaso que o Cais do Valongo foi o maior porto de desembarque de africanos escravizados nas Américas. Criado nas últimas décadas do século XVIII, na região dos atuais bairros da Gamboa e da Saúde, o Valongo era um verdadeiro complexo formado pelo Cais, Lazareto (para onde eram encaminhados os africanos escravizados que chegavam doentes), o Cemitério dos Pretos Novos e os barracões de compra e venda de africanos. Estima-se que aproximadamente 1 milhão de africanos escravizados tenham desembarcado neste porto, cuja história foi soterrada após a desativação do Cais (em 1831), e apenas recentemente revelada.

Ainda que a maior parte desses africanos escravizados fossem comprados por pessoas que viviam em outras regiões do Brasil, um número expressivo de homens, mulheres e crianças foram empregados em atividades urbanas. Isso porque o Rio de Janeiro foi uma cidade que dependia dos escravizados para funcionar, principalmente ao longo da primeira metade do século XIX.

Os africanos adquiridos por proprietários urbanos se juntavam aos milhares de outros cativos existentes (africanos e seus descendentes) na execução de uma série de trabalhos, entre as quais se destaca a atividade de ganho. Uma relação de trabalho específica do mundo urbano.

A atividade de ganho consistia na possibilidade do escravizado arrendar sua força de trabalho para terceiros. Tais escravizados tinham um acordo apalavrado com seus proprietários: eles deveriam pagar uma quantia previamente estipulada semanal ou quinzenalmente, não importando os meios pelos quais esse dinheiro seria adquirido. Em contrapartida, os trabalhadores de ganho tinham maior autonomia de trânsito, circulando com maior facilidade pela cidade. Tal autonomia era fundamental para que esses homens e mulheres pudessem sair em busca de trabalho. Todavia, esses escravizados também fizeram dessa autonomia uma oportunidade para terem melhores condições materiais de vida, bem como para ressignificar a vida na escravidão e as possibilidades de liberdade que uma cidade escravista poderia dar.

Pretos de Ganho. Fonte: Henry Chamberlain, 1822. Views and Costumes of City and Neibourhood of Rio de Janeiro.

Muitos escravizados de ganho conseguiram, por exemplo, negociar com seus proprietários a possibilidade de “viver sobre si”, ou seja, de morarem de maneira independente dos seus senhores. Muitos alugavam quartos e/ou casebres no centro da cidade. Outros viviam em freguesias mais distantes, em casas nas quais podiam ter sua autonomia respeitada. Os escravizados de ganho também eram os responsáveis por sua subsistência, tanto no que diz respeito à alimentação quanto à vestimenta.

Os escravizados de ganho realizavam um sem-número de atividades. Eram carregadores de produtos na alfândega, liteiros, vendedores, quituteiras, pedreiros, barbeiros cirurgiões. Ainda que houvesse uma forte competividade por trabalho – nem sempre a oferta era tão grande –, muitos desses escravizados conseguiram guardar algum dinheiro e compraram sua liberdade ou a de seus parentes. Mesmo que fosse a exceção, o que se observa em cidades como o Rio de Janeiro era um percentual expressivo de alforriados, ou seja, de homens e mulheres libertos.

A aquisição da liberdade jurídica estava no horizonte dos escravizados que viveram no Rio de Janeiro. Muitos que a conquistaram continuaram trabalhando no ganho, agora como libertos. Mas a alforria não foi a única forma de experimentar a liberdade. Junto com os escravizados de ganho, os escravizados domésticos, os escravizados alugados e os libertos e livres transformaram as ruas da cidade em espaço de trabalho, resistência e lazer. Homens e mulheres em condições jurídicas distintas, que fizeram do Rio uma cidade negra.

Os inúmeros viajantes a visitar o Rio de Janeiro ao longo do século XIX ficaram impressionados com a quantidade de homens e mulheres negros que trabalhavam na cidade. Sendo assim, os registros que eles deixaram sobre o período de suas visitas ao Rio se tornaram importantes documentos para os historiadores. Temos registros escritos de suas impressões, e também a produções de litogravuras e gravuras de “cenas da cidade”. 

Tais documentos apresentam parte da complexidade que marcou a dinâmica do Rio de Janeiro. Muitas atividades estão registradas nesses documentos, que não deixam dúvidas sobre o caráter central que o trabalho desses escravizados e dos negros e negras livres tinham para o funcionamento da cidade. Muitos viajantes ficaram surpresos (e por vezes encantados) com os novos sentidos que a população negra atribuía aos espaços públicos. Os encontros nos chafarizes da cidade não eram apenas para buscar água potável, mas também pontos de encontro entre companheiros de trabalho, casais, colegas.  Entretanto, como todo documento, ele precisa ser analisado de forma crítica. Muitas vezes, esses viajantes não tinham a plena compreensão de todos os usos que a população negra fazia da cidade.

Chafariz da Carioca e Convento de Sto. Antônio, 1860. (Litogravura). Fonte: Carlos Linde. Acervo Brasiliana.

Uma dimensão que fugiu ao olhar desses estrangeiros era o fato do Rio de Janeiro ter sido uma “Cidade esconderijo”. Muitos escravizados, tentando abandonar o cativeiro, fugiam. Tais fugas podiam ser para cercanias mais distantes da região central da cidade, e muitas vezes resultavam na formação de mocambos ou quilombos. Mas existiam os escravizados que fugiam sem sair da cidade. A maior autonomia de trânsito permitiu que o Rio se tornasse uma cidade esconderijo para escravizados que trabalhavam na própria cidade e para escravizados que vinham de regiões mais distantes. 

Tal dimensão revela como a população negra fez uso da condição racial da escravidão a seu favor. As autoridades responsáveis pela administração e ordem do Rio de Janeiro não tinham como definir, de antemão, se uma pessoa negra era livre ou escravizada. Essa dificuldade fez com que muitas leis municipais fossem elaboradas para tentar controlar a circulação da população escravizada. Mas foram muitos os casos em que escravizados se fizeram passar por libertos, experimentando uma liberdade provisória, que poderia durar dias, meses e, em casos mais excepcionais, anos. 

Mesmo aqueles que não fugiam podiam ressignificar os sentidos de liberdade em meio à malha urbana do Rio de Janeiro. As casas de Zungú, muito conhecidas na primeira metade do século XIX, permitiam que a população negra pudesse se encontrar em torno da produção do angu para fazer batuques, comer e beber juntos, descansar, encontrar seus parceiros amorosos. Irmandades negras também foram espaços nos quais novos sentidos de liberdade foram tecidos. Assim como os batuques, danças, capoeiras.

Não foi por acaso que depois de promulgação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871 – num contexto marcado pelo avança do movimento abolicionista –, muitas mulheres escravizadas e mães de diferentes partes do Império rumaram para o Rio de Janeiro na tentativa de garantir a liberdade de seus filhos e filhas. Para chegar à capital do Império e conseguir localizar a ajuda jurídica necessária essas mulheres se conectaram a uma importante rede de solidariedade criada pela população negra que vivia no Rio de Janeiro, revelando assim a existência de importantes protagonistas dessa cidade.

Homens e mulheres (africanos e nascidos no Brasil), escravizados livres e libertos que construíram um Rio negro, e que lutaram para que essa cidade também pudesse ser um espaço de liberdade. 

Mulheres no Mercado – Rio de Janeiro, em 1875. Fonte: Marc Ferrez / Coleção Instituto Moreira Salles.

Assista ao vídeo da historiadora Ynaê Lopes dos Santos no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF08HI12 (8º ano: Caracterizar a organização política e social no Brasil desde a chegada da Corte portuguesa, em 1808, até 1822 e seus desdobramentos para a história política brasileira); EF08HI14 (8º ano: Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, identificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas). 

Ensino Médio: (EM13CHS401) Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e rurais) e contextos.  (EM13CHS601) Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país.


Ynaê Lopes dos Santos

Doutora em História USP, Professora do Instituto de História UFF

 E-mail: ynae.lopes.santos@gmail.com; @nossos_passos_vem_de_longe

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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