“Uma doença não define nossos sonhos”

Durante o tratamento de um câncer, Sabrina descobriu querer se formar em medicina. Na favela onde vive no Recife, só um amigo seu entrou na universidade. Mesmo com todas as dificuldades, ela acredita no seu sonho.

FONTEPor Sabrina Teixeira dos Santos, da DW
" Acreditar me faz querer continuar", diz Sabrina Teixeira dos Santos (Foto: privat)

Meu nome é Sabrina e sou moradora de uma comunidade de Recife chamada Milagres. Tenho 25 anos e aos 18 fui diagnosticada com tumor desmoide na região pélvica e nos membros inferiores. Em meio a esse tratamento difícil, e com dificuldade de aceitar que me tornei uma paciente oncológica, descobri que quero me formar em medicina.

A descoberta veio em um belo dia de internação. Um residente veio até mim e disse o meu nome. Fiquei surpresa, pois ele não estava me acompanhando. Ao meu lado, há quase um ano acamada e sem dar sinais de consciência ou racionalidade, estava a dona Vânia. Ele chegou ao leito dela dando bom dia e pedindo licença para examiná-la. E mesmo que ela não respondesse, ele seguia a tratando com carinho e respeito. Naquele momento, decidi que seria aquilo que eu faria: seria médica para tratar os doentes com carinho e respeito.

Em meio a muitas perdas de amigas que amo, esperei terminar meu tratamento de quimioterapia para me dedicar aos estudos. Com muito esforço e ainda fazendo quimioterapia, terminei o meu ensino médio, na escola EREM Lagoa Encantada, em 2018. No mesmo ano, terminei a quimioterapia e decidi curtir com minhas amigas, ambas com câncer. Íamos ao cinema e visitávamos umas às outras nas internações. Prometemos que estaríamos juntas e foi assim até 2020, mas a pandemia veio e com ela a dificuldade de nos encontrarmos.

Logo a doença das duas evoluiu e, por fim e infelizmente, vieram a óbito. Ambas faleceram com dois meses de diferença uma da outra. Meu coração foi partido com tamanha perda que quase desisti de tudo, até de mim mesma. Decidi continuar, pois de nós três eu ainda tinha a oportunidade de dar continuidade e realizar sonhos. Então decidi não desistir, e tive a difícil missão de conciliar rotina de estudos com acompanhamento oncológico.

Educação como instrumento de oportunidades

É um verdadeiro malabarismo e nem sempre eu consigo. A dor crônica e a sonolência que os medicamentos me causam, me atrapalham. A ansiedade é a pior coisa. Além disso, a vida de uma estudante da favela não é fácil. Há muito tráfico e é muito comum jovens serem mortos por essa realidade.

São jovens que têm famílias desestruturadas, são vítimas da desigualdade social e não acreditam na educação, pois não a enxergam como um instrumento para oportunidades. Quando conseguimos enxergar, nos faltam portas e muitas vezes acontece de precisarmos largar os estudos para trabalhar e ajudar no sustento de casa. Aqui é muito comum casas serem construídas de madeira por falta de condições para usar alvenaria e é sempre uma em cima da outra.

Em 2022, a chuva foi muito intensa. Chovia muito, alagando alguns bairros, e era impossível transitar. No mês de maio, parecia ter piorado: era quase todo dia e recifense, que é acostumado no calor, já não aguentava mais tanta água. No dia 27 daquele mês começou uma chuva muito intensa, o dia inteiro sem parar. Lembro que estava terminando uma de minhas redações no final da tarde quando meu irmão de criação bateu na porta para pedir o cafezinho de sempre. Foi a tarde de chuva mais intensa do mês e da minha vida. A madrugada choveu sem cessar e na manhã do dia 28 a chuva continuava com muita intensidade.

Afogados, Conde Da Boa Vista, Joana Bezerra e outras localidades conhecidas do Recife estavam todas debaixo da água. Lojas fechadas, materiais perdidos. Levantei normalmente e fui trabalhar mesmo com a chuva. Às oito da manhã, alguns moradores comentavam que a comunidade do buraco estava cedida, que as barreiras estavam caindo e haviam pessoas soterradas.

Jovens, idosos, crianças e bebês. Não tínhamos noção do quão grande havia sido o estrago. Pelo menos não até presenciarmos os corpos serem identificados e ganharem rostos. Um desses rostos era do meu irmão de criação, o mesmo que um dia antes havia pedido café. O nome dele era Ulisses e tinha 22 anos. Morreram ele e sua avó, que moravam juntos, como vítimas do deslizamento.

A dor também é necessária 

Passamos intermináveis sete dias para encontrar seu corpo. Faz apenas três meses que não só ele, mas outras 105 pessoas perderam suas vidas pela enchente que assolou nossa cidade. Não foram vítimas do acaso, mas sim das circunstâncias do abandono do estado. Se a periferia fosse vista, não só essa, mas também outras fatalidades não aconteceriam.

Se antes eu pensava em como e de que forma a política reflete na nossa vida, hoje eu penso mais. Com 25 anos, eu acredito que já tenha tido experiências que não gostaria de ter e viver, mas penso que a vida é uma moeda de dois lados e um deles não podemos escolher. Uma professora, quando eu tinha 11 anos, me disse que eu sempre teria escolha, mas aprendi que até mesmo a escolha tem o lado da não escolha.

Isso se refere a quem você pode perder e a que doença pode ter, por exemplo. A escolha não te dá escolha sobre não morrer quando seu corpo está apto à morte. Sobre isso, existe o sol que quando raia pela manhã me mostra o lado de acreditar, lutar e estar. Aprendi em meio a tantas perdas que o viver é sagrado. A dor também é necessária para sabermos dar as mãos e nos enxergarmos nos outros.

Comer ou estudar

Passar em medicina é um sonho, mas confesso que me questiono se é pra mim. Na minha comunidade eu só tenho um amigo que entrou na universidade e foi em medicina. Sempre que nos encontramos ele me diz que eu também consigo. Moro com quatro pessoas da minha família em uma casa que só tem um quarto e o espaço é sempre barulhento. Por conta disso tenho que estudar nos turnos mais calmos, ou seja, pela manhã e no final da noite.

Na comunidade não temos muito incentivo a educação. As bibliotecas públicas são mais distantes e isso dificulta o acesso. Um outro obstáculo é a falta de dinheiro, pois não temos para comer e estudar. Sei que estudar é investimento, mas se alimentar é sobrevivência. Tento fazer o que posso para dar continuidade e concilio tratamento, estudos e agora trabalho de meio período com meu pai.

Os livros que ganhei me ajudam muito, mas sinto falta de um notebook para assistir às aulas, pois no celular é muito ruim. Quando crio coragem, eu peço o da minha amiga emprestado. Eu tinha um notebook que ganhei de doação, mas quebrou e simplesmente não tenho condições de comprar outro ou arrumar ele. O problema é que muitas horas sentada fazem minhas pernas incharem e a coluna doer por conta da localização do tumor. E sem notebook fica ainda menos confortável e mais difícil.

Limitações não são proibições

Mesmo com todas essas dificuldades, eu quero prosseguir e, sinceramente, não sei o porquê. Acredito que continuo porque também já quis desistir lá atrás, mas continuei. Acredito no amor e nos meus sonhos.

Sobre o amor: eu quero muito ser mãe, criar meu filho e ver ele se orgulhando de mim. Acreditar nisso me faz querer continuar. No entanto, meu tumor é no abdômen e, segundo meu médico, eu tenho 50% de chance de ter um aborto se engravidar.

Sobre sonhos: o que mais me motiva é ser médica e a motivação é o desejo de tratar pessoas como eu, e minhas amigas que faleceram. Quero que essas pessoas sejam tratadas por alguém que já passou e passa por algo como elas, que além de entender biologicamente o sentido das dores também as sente ou sentiu. Também quero que elas vejam em mim que uma doença não define os seus sonhos e que limitações não são proibições.

Por fim, desejo sobreviver. Como tenho conseguido todas essas vezes em que achei que não conseguiria.

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