Uma nota sobre a arte de arranhar a vida entre os dentes

FONTEPor Luádia Mabel de Lima Cesário, enviado para o Portal Geledés
“A cor púrpura” e “Quarto de Despejo”

“A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.” (Quarto de Despejo, pg. 32).

Há muito o que se dizer e muito que até aqui já foi dito sobre a solidão de Carolina Maria de Jesus, conquistada ao seu posto de escritora, mãe de três filhos e que denominava-se despejada do mundo, herdeira do amarelo da fome. Da mesma forma, há muito o que se traduzir nas linhas do livro de Alice Walker que conta a história de Celie, violentada durante a infância, apartada dos seus filhos (frutos de tais abusos) e confinada a uma vida em que chama o próprio marido de Sinhô, esquecendo-lhe o nome.

“A Cor Púrpura”, de Alice Walker foi publicado originalmente em 1982 e conta a história de uma mulher negra a partir de cartas que ela escreve endereçadas ao Deus que acredita. “Quarto de Despejo”, publicado em 1960, abre a público o diário real da autora, Carolina Maria de Jesus, dissertando o seu cotidiano no que denomina “Diário de uma Favelada”.

Há na sensibilidade de Carolina o olhar solitário de quem se vê gente e não desgarra da certeza de que tem direito à dignidade, mas é obrigada a reavaliar e reacreditar esta posição diariamente entre o trabalho de catar papéis, a confusão das casas vizinhas, o vazio de só ter uma refeição diária e as insistentes goteiras no barracão, que molhavam a cama e os lençóis quando se deveria estar dormindo. Há nas dificuldades de Celie a surpresa ao descobrir a existência do amor e os pequenos sustos de uma aproximação das próprias vontades, das próprias certezas sem a contaminação da imposição violenta de quem está do lado de fora ou, digo melhor, de quem está ao lado, com acesso livre à sua intimidade.

“[…] E rio. Parece que meu riso tá cortando minha cara. Sinhô sai da loja. Sobe na carroça. Senta. Sobe bem divagar, Pur que você tá aqui rindo feito uma boba?” (A Cor Púrpura, pg. 24).

Assim, os dois livros são mais do que diários, mas forjam-se retrato do que é quase indizível e, por este motivo, costumeiro a ficar preso nas gargantas de quem sobrevive. Creio ser esta a maior força da expressividade nos relatos das suas mulheres: a habilidade de dizer o que costuma falhas nas palavras, do que costuma romper linhas de sensibilidade e entravar-se no íntimo de cada um, guardado como ferida constante. As suas interpretações, mesmo considerando o fato de que Celie é uma personagem fictícia, de tão agarradas à realidade expressam o nó na garganta dos que passam fome, a certeza de dignidade dos que aos outros são julgados como se não a possuíssem, a reivindicação necessária de um lugar no mundo, de comida fresca, de carne na mesa para o almoço.

“Vesti os meninos que foram pra escola. Eu saí e fui girar para arrancar dinheiro. Passei no frigorífico, peguei uns ossos. As mulheres vasculham o lixo procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros. Até eu digo que é para os cachorros…” (Quarto de Despejo, pg. 105).

Eu não me atreveria a compreender o indizível já expressado nestes livros. Da mesma forma, cada pessoa deve se acometer com o faltar das próprias palavras ao tentar compreendê-los. E há muito entrelaçado entre as duas, eternizadas em dois grandes clássicos da literatura: os seus locais como mulheres negras, e as suas oscilações ao buscar os próprios lugares, reivindicar a potência que reside no fato de existirem.

“Eu sou pobre, eu sou preta, eu posso ser feia e num saber cozinhar, uma voz diz pra toda coisa que tá iscutando. Mas eu tô aqui.” (A Cor Púrpura, pg. 186).

As semelhanças entre as personalidades não configuram muita surpresa visto que, por maneiras diferentes, dissertam feridas de uma mesma origem. Insisto em defender que estes dois livros são retratos necessários a todas as pessoas negras e especialmente a nós, as mulheres em busca de si mesmas. E podemos, ao ler, demorar a nos perguntarmos: de que teorias nascemos? De que crenças? Para que futuro nós somos empurradas diariamente? 

Olhar as duas mulheres resgata um pedaço de cada uma de nós. Fala um pouco de nossas questões com palavras diferentes, mostra um pouco de nossas casas com outras cores nas paredes. Se olharmos aos nossos espelhos ainda existe a chance de vermos o rosto de Celie, a sensibilidade de Carolina. E por isto eu gostaria de fazer um apontamento que pode parecer bobo aos olhos do mundo: as duas mulheres, com seus gritos e diários, nos ensinam caminhos para reaprendermos a falar e nos familiarizarmos, até onde pudermos, com o hábito da escrita. Os diários são o ensejo para que vejamos a importância de ter em mãos os nossos próprios refúgios, as nossas oportunidades de reacender em palavras as dificuldades mais íntimas, as coisas que ainda não sabemos explicar ao mundo fora de nossas cabeças.

Foi o caminho que as duas escolheram: o remexer da própria ferida como estratégia para estanca-la. Assim, este texto não é mais que um apontamento, um pequeno lembrete, talvez pouco necessário. Mas, acima de tudo, este texto é um singelo convite para retirarmos o que pudermos de nossos dedos e gargantas. Para falarmos o que não compreendemos, e nos darmos a oportunidade de verbalizar enquanto compartilhamos, mesmo que somente com o ar do mundo externo, antes de guardar a sete chaves o que pensamos. Sobre as duas há pouco a se dizer, já que possibilitam um encontro com isto a que estamos pouco habituadas: nossas vontades, dúvidas, desejos e medos escondidos no fundo de nós mesmas.

Por isto, mais uma vez eu digo: “A Cor Púrpura” e “Quarto de Despejo” hão de serem livros de cabeceira das mulheres negras. Ao lado deles, nossos próprios diários, nossas próprias vontades, nossos próprios reflexos. Digo, precisamos nos construir como mulheres que sabem de si mesmas:

“Sinhô acha que tudo isso é jeito de home. Mas o Harpo num é assim, eu digo pra ele. Você num é assim. O que a Doci faz é coisa de mulher, eu acho. Principalmente purque ela e a Sofia é que são as pessoa que têm esse jeito. A Sofia e a Doci num são como os home, ele diz, mas elas também num é como as mulher. Elas num depende de ninguém, ele diz. E isso é diferente. O queu amo mais na Doci é o que ela já passou, eu digo. Quando você olha nos olho da Doci você sabe que ela passou pelo que passou, que ela viu o que viu, fez o que fez. E agora ela sabe” (A Cor Púrpura, pg. 238).

Encerro esta nota com a retomada desta simples afirmação: é assim que aprenderemos cada vez mais sobre os monstros que prendemos embaixo de nossas camas, é assim que aprendemos que a nossa única saída é largar de tentar esconder o que nos incomoda, desistir de fingir a intimidade de nossas dificuldades, a vergonha de nossos limites. É encarando os nossos segredos que descobriremos a leveza de tirá-los da garganta. Peguem seus cadernos, suas canetas, esqueçam as regras de gramática: comecem a falar intensamente sobre si mesmas.

 

 

 

 


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