Uma nova visão para a luta pelos direitos reprodutivos no Brasil

FONTEPor Anielle Franco, do Ecoa
A jornalista Anielle Franco (Foto: Bléia Campos)

Nos últimos dias, as redes sociais e os principais jornais do país começaram a narrar a história de uma criança de apenas 10 anos, que teve sua infância dramaticamente impactada por episódios de dor e violência. Essa criança, violentada sexualmente por seu tio desde os 6 anos de idade, teve que passar, não apenas por um imenso trauma em sua vida ao ser violentada, como também ao descobrir uma gravidez, decorrente dessa violência. A partir dali, o que poderia ser resolvido em poucos dias – se nosso sistema de justiça e nosso sistema de saúde funcionassem integralmente pela garantia dos direitos de mulheres e crianças – tornou-se um verdadeiro pesadelo.

Essa menina, passou pela dor de sofrer violências contínuas dentro de sua própria casa, e também pela dor da exposição feita por grupos fundamentalistas e fascistas nas redes sociais e presencialmente, com coerção e perseguição de seus familiares. Organizados institucionalmente, esses grupos vêm historicamente produzindo discursos e ataques violentos contra o direito das mulheres de poderem fazer escolhas sobre seu próprio corpo e sua vida reprodutiva.

Importante destacar que, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), no Brasil, a violência sexual acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima, e é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias. E também, que dos 159 mil registros feitos pelo Disque Direitos Humanos ao longo de 2019, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes, havendo um aumento de quase 14% em relação a 2018.

Durante a pandemia, tudo isso piorou, a violência doméstica aumentou, incluindo a violência sexual que mulheres sofrem dentro de casa por seus parceiros, e o acesso a serviços de saúde reprodutiva no Brasil ficou ainda mais difícil. Além disso, com os recentes ataques do governo federal aos direitos das mulheres, como por exemplo com a suspensão da Nota Técnica que tratava, entre outros temas, sobre a importância de se manter o funcionamento dos serviços de saúde sexual e reprodutiva, que haviam sido declarados pela Organização Mundial da Saúde como “serviços essenciais” durante a pandemia de Covid-19.

Tudo isso nos leva ao debate sobre o aborto no Brasil, que é considerado legal em 3 situações, sendo uma delas, quando a gravidez é resultado de abuso sexual e a outra quando põe em risco a saúde da mulher. Logo, o caso da menina de 10 anos de idade, se encaixaria em ambas, primeiro, porque sendo uma criança possivelmente não conseguiria dar prosseguimento à gestação e isso poderia lhe custar inclusive a própria vida; segundo, por se tratar de uma gravidez fruto de sucessivos estupros.

A mulher ou menina, que estiver em um desses casos têm direito de realizar gratuitamente o aborto legal por meio do SUS (Sistema Único de Saúde). O debate sobre o direito ao aborto seguro, vai muito além de ser contra ou a favor da prática. Trata-se de reconhecer a necessidade de garantirmos direitos e preservar as vidas das mulheres brasileiras e em especial de nós, mulheres negras, já que somos a maioria entre as que já fizeram um aborto durante a vida e a maioria entre as vítimas de violência.

Nessa disputa, envolvendo a garantia de direitos, entre religiosos fundamentalistas, a justiça e o corajoso movimento feminista brasileiro, chamo atenção para algo que nós, mulheres ativistas, brancas, negras, indígenas, trans, lésbicas, bissexuais, quilombolas, soropositivas, ribeirinhas, com deficiência e tantas, podemos e devemos reforçar e construir coletivamente com o movimento de mulheres negras: a luta por justiça reprodutiva. Esse conceito, cunhado por mulheres negras norte-americanas, vem nos ensinando que apenas com um olhar interseccional é que avançaremos na luta pela garantia de nossos direitos.

Trata-se não apenas de garantir o direito ao aborto e garantir que uma mulher possa decidir por seguir ou não a gestação, uma vez que sabemos que para muitas de nós não podemos decidir sobre tudo que nos acontece. Trata-se de um conceito-potência, como a pesquisadora e ativista Fernanda Lopes sempre nos lembra, capaz de produzir efeitos concretos na vida de mulheres negras e potencializar o ativismo pelos nossos direitos reprodutivos, mas não somente eles.

Para o movimento de mulheres negras, a luta pelos seus direitos sexuais e seus direitos reprodutivos é história, e tempos em tempos se renova. Lutamos pela garantia de termos nossos filhos, em um período onde nos esterilizavam massivamente e acreditavam que o problema da pobreza seria resolvido com pessoas negras e pobres tendo menos filhos. Hoje, lutamos, não apenas pelo direito de podermos decidir ou não ter nossos filhos e interromper a gravidez quando a mesma não for o que desejamos para nossa vida, ou quando a mesma for resultado de violências. Nós lutamos também pelo direito de criar os filhos e filhas que temos, em uma sociedade segura, livre de violências e discriminação, uma sociedade onde nem nós, nem nossas crianças, tenham seu corpo violado, sua infância retirada, ou direitos desrespeitados.

É urgente para o movimento feminista do Brasil incluir em sua agenda o debate de direitos reprodutivos a partir de uma perspectiva interseccional, capaz de colocar as questões de raça e classe lado a lado na luta pelo direito aos nossos corpos. Assim, avançaremos juntas, com coragem e determinação, lutando pelas nossas vidas, pelas vidas de meninas e para fazer valer nossos direitos.

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