Única docente negra do Departamento de História da UnB luta por igualdade

foto- Ana Rayssa:CB:D.A Press

Ana Flávia Magalhães Pinto busca inspirações no passado para lutar por um futuro mais igualitário

por Deborah Fortuna no Correio Brasiliense

foto- Ana Rayssa:CB:D.A Press

“Toda a pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas.” É assim que Ana Flávia Magalhães Pinto começa a contar sua história: com a música Caminhos do coração, de Gonzaguinha. Aos 40 anos, a professora da Universidade Brasília (UnB) entrelaça a própria trajetória com a de outras pessoas negras, como se a luta e a resistência delas, no passado, fizessem com que ela chegasse onde chegou. “Estar aqui, a despeito de todos os desafios, é honrar um esforço coletivo, o que faz com que, apesar de ser a única professora negra deste departamento (de História), eu não sinta que estou aqui sozinha”, resume a doutora.

Ana dedicou a carreira profissional a estudar as narrativas de pessoas negras no século 19, e a evidenciar como, a partir dos lugares da liberdade, seja na escravidão, seja na pós-abolição, essas figuras existiram e defenderam a própria humanidade no mundo. Foi dessa forma que a professora redescobriu Machado de Assis e outras tantas vidas que, segundo ela, foram esquecidas e alteradas numa fábula sempre escrita por pessoas brancas. Formada em jornalismo e em história e doutora e pós-doutora em história, Ana Flávia gosta de olhar para o passado para explicar os dias atuais e o futuro. “Sem que esse debate seja feito em ampla escala, não só dentro da sala de aula, mas com a comunidade escolar, o que inclui trabalhadores, pais e mães de alunos, a gente não realiza esse acerto de contas que o Brasil precisa ter com a própria história”, argumenta.

É por isso que o começo da trajetória na UnB foi tão importante: apesar de já cursar jornalismo em uma universidade particular e depois engatar um curso de letras-português, que não chegou a terminar pela chance de fazer um mestrado, foi ali, na universidade, que conheceu o coletivo EnegreSer — uma organização social que atuou na federal combatendo e denunciando o racismo. Foi dentro do movimento que Ana começou a estudar e entender todo o processo histórico que faz com que negros tenham menos espaços dentro da sociedade.

“Onde falaram que as pessoas negras não podem estar? Pois é lá que vamos ficar. O que não podemos fazer dentro da universidade que diz respeito a ações dela? É pesquisa? Estudo? Pois é nesse campo que vamos atuar”, garante.  Ela foi a primeira integrante do grupo que se tornou professora do câmpus Darcy Ribeiro — conquista alcançada em 2018. “Todo esse esforço de reconhecimento de pensamentos e experiências negras foi silenciado ao longo do tempo. Essa rede me fazia não só acreditar, como me fazia ter condições mínimas para levar isso adiante”, completa.

Com essa vontade, Ana começou o mestrado, o doutorado e depois o pós-doutorado. Ganhou prêmios, lançou o livro Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista, e hoje luta para que essa história não seja esquecida. “É muito bom reencontrar com esse passado”, diz. “Nada como um dia após o outro costurando a luta de todos eles.”

Desigualdade

Dados do informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostraram que, pela primeira vez, negros são maioria no ensino superior público. O documento revelou que a proporção chegou a 50,3% em 2018.  O valor, claro, ainda está aquém das 55,8% de pessoas que negras que vivem no Brasil, mas é um avanço. No caso da docência, no entanto, o cenário é outro. “Se por um lado, avançamos bastante na luta de inserção de estudantes negros nas universidades, no que diz respeito à docência, a gente ainda tem muito o que fazer”, afirma.

Mas, a história de Ana começa antes da universidade e dos títulos. Nasceu em Planaltina, em 1979. Na mesma cidade, cresceu, frequentou escola pública e, depois, quando terminou o ensino médio, conseguiu uma vaga em uma universidade particular para cursar jornalismo. O pai, que veio de uma família de trabalhadores rurais e foi expulso da própria terra durante os anos 60, saiu de Goiás para tentar uma nova vida em Brasília. A mãe, alfabetizada apenas aos 15 anos, teve uma trajetória diferente, que acabou abrindo as portas para as duas filhas. Conseguiu fazer o magistério, licenciatura e, depois, passou a dar aulas de matemática. “Como acontece com muitos homens negros, meu pai era apaixonado por estudos, mas teve que abrir mão para trabalhar. Apesar de nós (Ana e a irmã) não sermos as primeiras a fazer o ensino superior na família, fomos as primeiras a fazê-lo como uma estratégia indispensável. No momento em que minha mãe fez, as coisas mudaram muito”, conta a professora.

Durante a infância, cresceu num Brasil mascarado de democracia racial, apesar de não haver representatividade em nenhum espaço infantil. “Como em muitas crianças, isso gerou um constrangimento. E também uma dificuldade a partir daquilo que eu era, da minha própria família e também de me afirmar e ter uma visão positiva do meu passado, e do que poderia ser o meu futuro”, relata.

Contudo, Ana reforça que, apesar da difícil trajetória, negros sobrevivem ao racismo brasileiro. “É disso que eu me esforço em falar, das histórias que não sucumbiram a essas camadas de negação da nossa existência. E nós existimos.”, diz. É assim que Ana Flávia entende que hoje, mais do que nunca, a luta deve continuar para conquistar espaços e recontar a história para que ela não caia no esquecimento.

Por isso, ao lembrar do passado e considerar o presente, Ana dá o sinal para o futuro: “Apesar da imagem que o Brasil tem de pessoas negras, há esforços diários e praticamente infinitos para que uma pessoa negra não sucumba e não abra mão de seus sonhos. E minha trajetória fala muito disso”.

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