USP considera que trabalhadora não pode ter produção intelectual

O Sistema Integrado de Bibliotecas da USP não considera da base de “produção intelectual” qualquer elaboração feita por trabalhador de nível básico.

Por Diana Assunção, do Esquerda Diário 

Nesta semana o Sistema Integrado de Bibliotecas da USP retirou da base “produção intelectual” algumas publicações de uma trabalhadora da USP que se encontram na Biblioteca da Faculdade de Educação. As publicações são “A precarização tem rosto de mulher” (volume 1 e 2), “Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história” e o prólogo do livro “Mulher, Estado e revolução”. O motivo? O fato da trabalhadora ser nível básico, o que pelo regimento da USP leva a não reconhecer sua produção intelectual. Sim, pelo regimento da USP um trabalhador nível básico não é capaz de produzir intelectualmente. A trabalhadora em questão é Diana Soubihe Assunção, diretora do Sintusp e conhecida militante dos direitos das mulheres e dos trabalhadores, historiadora formada pela PUC-SP e trabalhadora nível básico da seção de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da USP. Publicamos abaixo sua carta pública.

Nesta semana fui surpreendida com uma informação inesperada no Sistema Dedalus. Os cadastros das publicações que doei para a Biblioteca da Faculdade de Educação da USP foram alterados pelo Sistema Integrado de Bibliotecas da USP. Eles retiraram o cadastro da base de “produção intelectual”. Vou relatar aqui nesta carta um pouco da trajetória destas publicações, mas também o quão assustador é o motivo dessa “simples” mudança do cadastro.

Já há vários anos tenho levado adiante muitos estudos sobre o tema da mulher na perspectiva do marxismo. Isso resultou em alguns projetos onde estive envolvida não somente na produção mas nas elaborações. Em 2008, com as Edições ISKRA, organizei a versão brasileira do livro“Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história”. Além de ter elaborado o prólogo deste livro, também escrevi um dos capítulos sobre a jornalista Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu. O livro teve como objetivo retratar a história de mulheres rebeldes e lutadoras que muitas vezes são apagadas dos currículos nas universidades. Os capítulos retratam a história de mulheres como Flora Tristán, Louise Michel, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Carmela Jeria, Lucrecia Toriz, María Cano, Marvel Scholl e Clara Dunne, Genora Johnson Dollinger, Natalia Sedova, Pen Pi Lan, Mika Etchebéhère, Nadehzda Joffe, Edith Bonne, Patrícia Galvão, além de um anexo sobre a luta das mulheres brasileiras no ascenso operário entre 1978 e 1980.

Em 2011 organizei uma nova publicação chamada “A precarização tem rosto de mulher”, que teve 2ª edição em 2013. O livro foi escrito por mim, com ajuda de uma equipe, e o prólogo também é de minha autoria, em ambas as edições. O livro conta a verídica história das greves das trabalhadoras terceirizadas da USP, tendo sido não somente um livro de cabeceira para várias trabalhadoras como um instrumento de organização contra o trabalho precário. Sobre este livro, vários intelectuais emitiram opiniões. Beatriz Abramides, da Associação de Professores da PUC-SP declarou que o livro é “um rico e valoroso instrumento para o projeto socialista de emancipação humana”. Jorge Luiz Souto Maior, juiz do trabalho e professor da Faculdade de Direito da USP disse que é “um livro que cria consciência de classe”. Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp considerou o livro “uma iniciativa muito importante”. Claudia Mazzei Nogueira, professora da Unifesp da Baixada Santista declarou que “este livro é um exemplo para as próximas lutas de terceirizados”. Paula Marcelino, professora das Ciências Sociais da USP, considerou “um acerto a escolha do tema da precarização, se trata de um livro militante”.

Em 2014 organizei junto com a Boitempo Editorial a edição do livro “Mulher, Estado e revolução”, da historiadora norte-americana Wendy Goldman, inédito no Brasil. O prólogo do livro é de minha autoria. Foi um dos 10 livros mais vendidos na Feira de Livros da USP, e teve alcance nacional saindo em dezenas de revistas, jornais, etc. Além destes livros publicados, tenho dezenas de elaborações sobre variados temas, como uma elaboração sobre “Quem são as mulheres da USP” em contraposição ao livro de Eva Blay e Alice Beatriz da Silva Gordo Lang que contam apenas uma parte – branca e de elite – das mulheres da USP. Elaborei sobre a combatente da Comuna de Paris Louise Michel, publiquei resenha sobre o livro “A família e o comunismo”, que é uma compilação de textos de Alexandra Kollontai e recentemente elaborei prólogo da compilação “Trotski e a luta das mulheres”, da Centelha Cultural, que em breve pretendo também doar para o acervo.

Os livros citados fiz questão de doar para a Biblioteca da Faculdade de Educação, que é onde trabalho. E esta semana tomei conhecimento que o Sistema Integrado de Bibliotecas da USP decidiu alterar o cadastro destas publicações retirando da base de “produção intelectual”. O motivo é o mais assustador: é porque sou trabalhadora nível básico. O regimento da USP, através do SIBI, não considera possível que um trabalhador ou trabalhadora nível básico possam produzir intelectualmente. E se produzirem, como é meu caso, não vão reconhecer. Então ordenaram retirar, e retiraram. Me chama atenção que frente a isso a chefia do SIBI não pare para refletir “já que há uma trabalhadora com produção intelectual, será que não há algo de errado com o regimento?”. O contrário disso foi o que ocorreu, e a partir de agora, mesmo tendo organizado e publicado três livros, para a USP isso não é “produção intelectual”. As publicações foram mantidas na base “livro”, mas por que essa diferenciação? Porque os livros de um docente, ou até mesmo de um trabalhador nível superior são considerados “produção intelectual” e os meus não são, simplesmente porque sou trabalhadora nível básico? Quando a diferenciação se dá por uma questão de classe, isso se trata de preconceito, e não “padronização”.

Então, quando falamos do elitismo da USP, às vezes pode parecer uma frase de efeito. Mas na maioria das vezes somos pegos até mesmo de surpresa por este tipo de preconceito institucional. É a imposição da divisão entre trabalho intelectual e trabalho braçal, como se os trabalhadores de nível básico não fossem capazes de pensar. É aquela vertente da história onde é preciso sufocar a história dos oprimidos e explorados. Algo bastante sintomático pra um espaço que se diz produtor de conhecimento. Mas qual conhecimento produzem e para que? Hoje a USP me disse, com esta atitude, que não tenho intelecto. E não tomo isso como uma acusação individual, mas como um ataque coletivo a todos os trabalhadores nível básico da Universidade, e mais amplamente de outros locais de trabalho.

Por tudo isso que é inadmissível este ocorrido. Uma mostra cabal do enorme preconceito social que reina dentro da USP. E é também por isso que, mais uma vez, não poderei me calar. Exijo imediata explicação do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP e exijo não somente que o cadastro de minhas publicações possa ser retornado à base de “produção intelectual”, como que qualquer trabalhador ou trabalhadora nível básico tenha o direito de ser reconhecido seu “intelecto” quando quiserem escrever com as próprias palavras as suas histórias, a história dos explorados, ou o que bem entenderem. Ao mesmo tempo, faço um chamado aos professores, estudantes e trabalhadores da USP a não permitir que este preconceito intelectual contra os trabalhadores da USP seja levado adiante, apoiando esta luta que neste momento passa por não aceitar esta absurda diferenciação nas publicações de minha autoria.

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