USP prepara política de cotas para a pós-graduação

Grupo com professores e alunos vai rastrear cursos que já possuem reserva de vagas e elaborar ações para a universidade

FONTEPor Laura Mattos, da Folha de S. Paulo
A fisioterapeuta Merllin de Souza, 30, e a engenheira Júlia Sanches, 27, que fazem parte de um grupo de trabalho criado pela USP para formular políticas de cotas na pós-graduação (Foto: Zanone Fraissat/Folhapress)

USP (Universidade de São Paulo) formou um grupo com professores e alunos para formular uma política de cotas para a pós-graduação. A ideia é realizar uma espécie de censo a fim de rastrear quais unidades já começaram a implementar algum tipo de reserva de vagas, para, na sequência, elaborar modelos que possam ser adotados pelos mais de 260 cursos de pós oferecidos pela instituição.

O Grupo de Trabalho de Políticas Afirmativas e de Inclusão na Pós-Graduação foi criado por meio de uma portaria publicada no Diário Oficial no final de setembro e envolve as pró-reitorias de Pós-Graduação e a de Inclusão e Pertencimento.

Merllin de Souza, 30, doutoranda no programa de Ciência da Reabilitação da Faculdade de Medicina, é uma das integrante do grupo. “Sou uma mulher preta, feminista, amazonense. Para mim, a pauta das ações de inclusão é muito importante. Não há como produzir ciência se não houver diversidade, tanto de hipóteses de pesquisa quanto dos indivíduos que produzem conhecimento.”

Outra integrante do grupo é Júlia Sanches, 27, mestranda de engenharia de minas da Escola Politécnica. “É muito complicado não ter representatividade. Não tenho nenhum professor preto, tenho poucas professoras mulheres, e todas brancas. Em congressos acadêmicos, temos que defender muito mais as nossas pesquisas do que os homens, as pessoas brancas, isso é muito desgastante”, afirma.

Nos últimos anos, com a consolidação das cotas na graduação, iniciativas pontuais de reserva de vagas têm surgido em programas de pós da USP.

Na ECA (Escola de Comunicações e Artes), por exemplo, está sendo realizado o primeiro processo seletivo para mestrado e doutorado com cotas.

A pós de artes visuais e a de ciências da comunicação reservaram, respectivamente, 30% e 35% das vagas para candidatos pretos, pardos e indígenas. Já o programa de artes cênicas destinou 50% das vagas para cotas. Além de 30% para pretos e pardos, há cotas de 5% para indígenas, pessoas com deficiência, trans e refugiados –de acordo com os editais, será formada uma bancada de heteroidentificação que utilizará critérios fenotípicos para avaliar a inscrição de candidatos que se declaram pretos ou pardos.

Há ainda reserva de vagas na pós da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), da Faculdade de Educação e da Faculdade de Direito. Para além dos cursos de humanas, as cotas já chegam a outras áreas. No Instituto de Biociências, por exemplo, a pós em ecologia deu início, no ano passado, à reserva de 50% das vagas para pretos, pardos, indígenas, trans e pessoas com deficiência.

O Obaap (Observatório de Ações Afirmativas na Pós-Graduação), que reúne editais com políticas de inclusão em universidades públicas, calcula que existam na USP pelo menos 30 programas de pós com cotas, em áreas como ciências biológicas, humanas, sociais aplicadas, da saúde e multidisciplinares. O último levantamento feito pela própria USP foi em 2020, com a resposta de 129 dos 268 programas, e havia cotas em apenas 15 deles –o número oficial atualizado será levantado pelo novo grupo de trabalho.

Eram, portanto, 5% dos programas, dois anos atrás, ante cerca de 10% atualmente. Para se ter um parâmetro, no Brasil, 54% dos programas de mestrado e doutorado de universidades públicas oferecem cotas, de acordo com o Obaap.

Segundo o pró-reitor de pós-graduação da USP, Marcio de Castro Silva Filho, o grupo de trabalho deverá elaborar modelos com flexibilidade para que sejam ajustados aos diferentes processos seletivos e às especificidades de cada programa.

“Apresentaremos propostas, mas cada programa terá de discutir internamente e entender a melhor forma de adotar as cotas, considerando as mais variadas questões de diversidade”, afirma. “Na Poli, por exemplo, poderia fazer sentido haver cotas para mulheres, que têm pouco espaço tanto nas faculdades de engenharia quanto no mercado de trabalho. Já na enfermagem, talvez não. Há questões particulares de cada área.”

A ideia inicial não é tornar as cotas obrigatórias, mas “conscientizar a comunidade sobre a necessidade de implementá-las”, explica o pró-reitor. “Esse entendimento nem sempre é claro. Assim que finalizarmos o censo, haverá um fórum para discutir a adoção dessas políticas de acesso e também de permanência na pós.”

As políticas de permanência são aquelas que oferecem um suporte para que o estudante consiga se manter na universidade. Segundo a reitoria, a USP oferece bolsas para estudantes de pós, com cotas para pretos, pardos e indígenas, além de suporte pedagógico para algumas disciplinas, apoio psicoterápico, além de um programa de acompanhamento para alunos economicamente vulneráveis.

Está em análise uma ampliação da política de permanência, o que o pró-reitor defende ser essencial, especialmente considerando que o valor das bolsas oferecidas pelo governo federal para estudantes de pós não é corrigido desde 2013 –pela Capes (agência ligada ao governo federal), é de R$ 1.500 para o mestrado e de R$ 2.200 para o doutorado.

“Temos hoje 27 mil alunos de pós, mas as inscrições têm caído nos últimos anos, na USP assim como em todo o país. Há programas que não conseguem nem preencher as vagas. As pessoas dizem: ‘Eu adoro ciências, mas como vou me manter com R$ 1.500, R$ 2.200, especialmente em uma cidade como São Paulo?’”, pondera o pró-reitor. “É urgente uma recomposição dos valores das bolsas e uma flexibilização da exigência de dedicação exclusiva ou de que a bolsa seja a fonte única de renda.”

A dificuldade de atrair talentos é ainda maior, lembra o pró-reitor, em cursos de áreas nas quais o mercado de trabalho é competitivo. “Como convencer um aluno de engenharia ou de computação, por exemplo, a fazer mestrado ganhando R$ 1.500 se ele consegue um contrato com um salário que é quatro, cinco vezes esse valor?”, questiona Silva Filho. “Muitas vezes o estágio paga melhor do que bolsas de pós. E na medicina, por exemplo, um plantão pode pagar o que a bolsa paga em um mês.”

Além disso, o pró-reitor pondera que “a pandemia também reduziu o interesse pela pós, além da crise econômica, da falta de investimento do governo federal em pesquisas e nas universidades e do crescimento do movimento anticiência, um fenômeno internacional que no Brasil é uma bandeira do bolsonarismo”.

“Essa é uma tragédia do nosso país. Não damos oportunidades aos talentos e deixamos os jovens sem motivação”, afirma o pró-reitor. “Nossos indicadores da educação básica são lamentáveis e isso está chegando ao ensino superior. E como vamos mudar o país dessa forma, com a ciência sendo questionada?”

A queda de procura pelo mestrado e o doutorado é também um argumento para aqueles contrários às cotas na pós. A ideia é que a reserva possa dificultar ainda mais o preenchimento de vagas em áreas que já têm sido pouco procuradas.

Um professor da USP, que pediu para não ter seu nome divulgado, defende que não haja imposição na universidade, e sim flexibilidade na adoção dessa política.

Ele aponta que a pós-graduação das melhores universidades tem campos de pesquisa muito competitivos, inclusive internacionalmente, o que, para o docente, dificultaria a implementação das cotas. O professor questiona, por exemplo, como empresas que fazem pesquisas em colaboração com universidades brasileiras vão encarar que se abra mão do que chamou de meritocracia.

Na graduação, pesquisa feita pela própria USP mostrou que os cotistas atingem desempenho semelhante ao de não cotistas ao longo do curso.

Na avaliação do professor, no entanto, a conclusão da pesquisa também reforça o argumento de que as cotas na graduação já seriam suficientes para equalizar as desigualdades na formação, o que tornaria a política menos necessária na pós.

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