Vacinação por idade favoreceu brancos de bairros ricos, onde mortalidade por Covid-19 é menor

FONTEPor Rodrigo Gomes, da RBA
Priorizar a vacinação de pobres e negros é uma ação fundamental para reduzir as hospitalizações e a mortalidade pela covid-19 (Foto: João Viana/Semcom)

A decisão de priorizar a vacinação contra a covid-19 por idade, iniciando pelos maiores de 90 anos, privilegiou a população branca, rica e residente em regiões da capital paulista onde a mortalidade por covid-19 é menor. É o que mostra um estudo realizado pelo Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da USP, que mapeou a distribuição geográfica da população negra, a incidência de mortes pela doença na cidade de São Paulo e comparou com os registros da vacinação. A sobreposição dos três mapas mostra uma clara inversão entre a vacinação e locais com maioria da população negra e alta mortalidade causada pelo novo coronavírus.

Enquanto os extremos da cidade concentram a maioria da população negra e também a maior parte das mortes por covid-19, o chamado “eixo sudoeste”, que vai dos distritos de Campo Grande, na zona sul, passa por Moema, Pinheiros, Consolação, Jardins, Butantã e termina na Lapa, na zona oeste, concentra a imensa maioria dos vacinados com duas doses até aqui.

“A opção de vacinar os mais velhos primeiro, mais sujeitos a situação de agravamento da doença e morte, resultou num percentual desproporcionalmente maior de vacinados no chamado eixo sudoeste da cidade, onde se concentra uma população branca com maior média etária e mais renda. Esta região não coincide com os locais mais afetados pelo vírus, como mostram os mapas de hospitalizações e mortes padronizadas. Haveria que se pensar, então, ao se abrir para mais grupos, que finalmente critérios de priorização permitissem atingir estes locais”, argumentam os pesquisadores.

Relação direta

Outros estudos já indicavam que o critério de idade para a vacinação contra a covid-19 poderia favorecer a desigualdade social e racial na proteção contra o novo coronavírus. Em novembro de 2019, a Rede Nossa São Paulo apresentou dados mostrando que a capital paulista registra uma diferença de até 23 anos na expectativa de vida entre moradores de bairros ricos e de bairros pobres. Segundo o Mapa da Desigualdade, os moradores da região mais rica da cidade vivem mais, com expectativa que varia entre 69 e 81 anos. Já os moradores dos extremos leste, norte e sul têm expectativa entre 57 e 63 anos.

O estudo do LabCidade também aponta que, em vários momentos, os gestores públicos das três esferas apontaram para o fato de que a população mais pobre e os trabalhadores menos especializados estavam mais expostos e tinham maior risco de adoecer e morrer pela covid-19. No entanto, isso não se materializou em políticas públicas para evitar a vitimização da população pobre e negra.

“O percurso da pesquisa que desenvolvemos até aqui evidencia a hipótese de que a narrativa que associa a covid-19 a determinados territórios tem apenas o efeito de naturalizar as mortes causadas pela doença, já que, mesmo com o reconhecimento da vulnerabilidade, não há adoção de políticas dirigidas especialmente para estes grupos e muito menos sua inclusão nas prioridades de vacinação. Essa naturalização da morte não é nova e nem é neutra e tem também uma dimensão racial. Os territórios com maior incidência de covid-19 são territórios onde mora a maior parte da população negra da cidade. Por outro lado, os territórios onde mais se vacinou até agora são onde se auto segrega a população branca de renda mais alta”, apontam os pesquisadores.

Injustiças estruturais

No início de maio, um estudo publicado no Jornal Britânico de Medicina (BMJ, na sigla em inglês), apontou que priorizar a vacinação de pobres e negros contra a covid-19 tem maior potencial para salvar vidas do que critérios de idade. “Grupos socialmente desfavorecidos são desproporcionalmente mais propensos a ser hospitalizados e morrer de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Os resultados de saúde diferenciais podem ser explicados por injustiças estruturais ligadas à incidência de comorbidades e às condições socioeconômicas. Tais fatores limitam a capacidade das populações de baixa renda e não brancas de se isolar e reduzem seu acesso a serviços de saúde de qualidade”, dizia a publicação.

Para os pesquisadores do LabCidade, é urgente que se desenvolvam outros critérios de prioridade na vacinação contra a covid-19, como já foi adotado, ainda de forma incipiente, para algumas categorias de trabalhadores, como motoristas, professores, metroviários e policiais. No entanto, eles apontam que é preciso que a política de imunização considere a situação de desigualdade social e racial como fator determinante.

“Os critérios da campanha de vacinação adotados até o momento tornam-se mais um exemplo de como opera o racismo estrutural em nossas cidades. A reificação de determinados territórios, a priori, produz estigmas que colaboram com a naturalização da morte e, estrategicamente, da inação do Estado. Se por um lado, o problema é repetidamente associado a territórios pretos, pobres e periféricos, por outro lado, nenhuma ação pública foi desenhada a partir desses elementos. A suposta neutralidade do critério etário escamoteia fatos largamente conhecidos sobre nossas cidades: a desigualdade na expectativa de vida é territorialmente demarcada, as atividades laborais são social e territorialmente demarcadas. Às vésperas de uma terceira onda, não é mais possível adiar a adoção de critérios de vacinação que sejam socialmente eficazes e justos”, concluem.

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