Vale do Dendê alia inovação e ‘baianidade’ para transformar Salvador no Vale do Silício brasileiro

Ao lado de Brasília, Salvador é a terceira cidade mais populosa do país. Com cerca de 3 milhões de habitantes, a capital do Estado da Bahia se caracteriza por ser um dos roteiros turísticos mais importantes do Brasil.

Por Kauê Vieira

As praias, o calor abundante, a efervescência do carnaval, a diversidade gastronômica a conservação de elementos fundamentais para a história brasileira fazem da capital baiana um centro inesgotável de criatividade.

Depois destes elementos tão importantes uma pergunta paira no ar, até que ponto Salvador aproveita todo o seu potencial turístico? Aliás, o potencial turístico e de atrair negócios e investimentos se restringe apenas ao carnaval e o mar? Não!

Para mudar esta realidade. Ou melhor, fazer uma leve correção de curso, mas sem deixar de lado marcadores históricos, nasce com a proposta de se transformar no berço da criatividade baiana a aceleradora Vale do Dendê.

A inovação passa pela descentralização do pensamento (foto: Alex/Divulgação)

Lançada em novembro de 2017, a Vale do Dendê une esforços de experientes profissionais baianos para oferecer consultoria em prol da elaboração de projetos inovadores e criativos. Baseada no centro financeiro de Salvador, a empresa mapeia os potenciais econômicos para buscar as melhores parcerias com os setores público e privado.

“Nós atuamos em três frentes. Uma é  por meio de uma aceleradora de negócios que vem acelerando 10 empresas e  apoiando outros 30 empreendimentos. As empresas aceleradas estão tendo acesso a mentorias, consultorias, facilitações e imersões para escalarem seus negócios, além de se conectarem com potenciais investidores. Já a rede tem acesso a eventos de networking, cursos e workshop da nossa escola de inovação, nosso segundo braço institucional. E por fim, atuamos como uma consultoria para ajudar empresas, fundações  e o poder público a compreenderem o potencial da inovação e da diversidade”, explica, em entrevista ao Hypeness, Paulo Rogério, publicitário e empreendedor marcado por buscar a implementação de uma comunicação que externe a diversidade do povo baiano.

Aliás, é neste sentido diverso que a Vale do Dendê se coloca como uma das novidades mais interessantes dos últimos tempos. Pensando na criatividade, mas sem deixar de lado a importância do lucro, a Vale busca profissionais tradicionalmente excluídos dos principais radares do Brasil. O lema é se manter distante dos estereótipos. Não se trata aqui, mais uma vez, de excluir elementos formadores do soteropolitano, como a música e as artes, pelo contrário. O cuidado de Paulo e sua equipe é abarcar as manifestações intelectuais, acadêmicas, empreendedoras e artísticas de uma parcela historicamente excluída da cidade.

“Nossos programas têm como foco regiões periféricas e, no caso de Salvador, o Centro Histórico que possui um grande potencial econômico, mas que ainda está muito distante do investimento privado, fazendo com que muitos casarões centenários estejam vazios. Fazemos sempre um paralelo de Salvador como cidades históricas como Nova Orleans (EUA), Barcelona (Espanha) ou Cartegena das Índias (Colômbia), cidades que investiram na economia criativa como um fato de geração de renda. Somos a capital brasileira da música, segundo a UNESCO,  um conjunto arquitetônico único no Brasil e ainda temos um grande ativo internacional que é cultura afro. Por isso que acreditamos no potencial de Salvador ser reconhecida como a capital da criatividade e inovação do Brasil” salienta.

O Vale do Silício Baiano está sendo gerado (foto: Reprodução/Facebook)

Para entender melhor lá vão alguns subsídios. Salvador é a cidade com o maior número de negros fora da África. Entre os 3 milhões de habitantes, mais de 85% é formado por pessoas negras. Agora, será que este domínio se reflete nos chamados espaços de poder?

Por causa da sombra do racismo sistêmico, negras e negros, especialmente os moradores de bairros periféricos, permanecem fora do guarda-chuva. Essa camada majoritária da população ainda tem que pelejar para adentrar espaços tidos como exclusivos. O problema é que, como foi dito, estamos falando da maioria dos habitantes da capital baiana. Trocando em miúdos, Salvador acaba deixando de lado um imenso potencial criativo, gerador de renda e investimentos.

“Nós somos uma das cidades que mais possuem o triste legado da escravidão, por ter sido, assim como o Rio um grande porto de venda de seres humanos durante a escravidão e por terem sido capitais em momentos diferentes. Aqui a maioria numérica não se traduz em poder econômico. Diferente de cidades como Atlanta ou Chicago, aqui não há uma classe média negra do ponto de vista econômico.  Nós estamos buscando formas de reverter isso, apostando na qualificação dos empreendedores locais e criando vetores de geração de renda ao analisar cadeiras produtivas como o turismo, o entretenimento, a moda, a gastronomia e a tecnologia. Por isso, estamos apostando muito na internacionalização da cidade para atrair, por exemplo, o capital afroamericano que representa 1.5 trilhão de dólares  e que busca formas de investir em comunidades negras fora dos EUA. Salvador é o local ideal para esse investimento estratégico”, pontua Paulo Rogério, que nos últimos anos esteve presente em encontros com pessoas como o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama.

Além de Paulo Rogério, a Vale do Dendê conta com a presença de mais três gestores. São eles, Itala Herta – empreendedora e produtora cultural, com mais de 10 anos de vivência com projetos de inovação social; Rosenildo Ferreira, jornalista com experiência nas redações dos principais veículos do país, como Jornal do Brasil e IstoÉ Dinheiro. O time é completado por ninguém menos do que Helio Santos, Doutor em administração e Mestre em finanças pela Universidade de São Paulo. Um dos maiores especialistas em gestão da diversidade.

Você sabe, representatividade importa, sendo assim o olhar cuidadoso de quatro pessoas negras, com backgrounds diversificados, coloca a Vale do Dendê como um exemplo de empreendedorismo de sucesso.

Em menos de 1 ano são mais de 100 projetos acompanhados pela empresa (foto: Reprodução/Facebook)

Há algum tempo negras e negros estão na linha de frente do mercado empreendedor. Segundo levantamento feito pelo Sebrae e publicado no portal Correio Nagô, entre 2002 e 2012, 50% dos micro e pequenos empresários se autodeclararam negros ou pardos. Enquanto 40% se afirmaram brancos.

Todavia, as condições de gestão de negócios ainda são distintas. No caso de pessoas negras, a barreira que impede a ascensão para setores mais lucrativos passa direto pela educação financeira e qualificação. Se tratando de Nordeste, a urgência de uma mudança de cenário é ainda maior, já que segundo o próprio Sebrae, 41% dos negros e pardos empreendedores estão concentrados nesta região.

“Temos uma diversidade de experiências grande em nosso time de gestores/as e colaboradores. Eu cofundei algumas iniciativas sociais no campo da diversidade, como o Instituto Mídia Étnica e o portal Correio Nagô e hoje sou professor de publicidade na Universidade Católica do Salvador, além de ser afiliado a um centro e pesquisa de Harvard. Já Rosenildo Ferreira é um jornalista que vem de uma experiência grande em redações, onde já considerado um dos mais admirados do Brasil. O professor Helio Santos é um grande guru do tema da diversidade, sendo um dos pioneiros em falar sobre economia negra no Brasil décadas atrás e Itala Herta vem de uma experiência grande como relações públicas em trabalhar com comunidades quilombolas, periféricas e também já teve empresa de produção cultural. O mix de habilidades que trazemos certamente faz com que a organização cresça e possa cumprir sua missão de promover empresas que possuam em seu DNA a inovação e a diversidade”, reconhece Paulo Rogério.

Para Helio Santos é justamente por meio do empreendedorismo que se pode atenuar os efeitos do racismo e da desigualdade social como um todo.  Atento aos novos métodos criativos, o professor, que encontra tempo para colaborar como projetos como o Baobá – fundo para a equidade racial, diz que “a inovação é o combustível que dá sustentabilidade às periferias, que sempre desenvolveram antídoto para se defender do racismo instituciona. A periferia é ouro, mas as elites gostam de bijuterias”, lembrou durante evento de lançamento da Academia de Inovação Política, em Salvador.

Visão dividida por Paulo Rogério. Vencedor do Troféu Raça Negra, o empresário é categórico ao apontar a inclusão social como único caminho possível para o desenvolvimento do Brasil. O que não deixa de ser mentira, afinal como um país formado por 54% de negras e negrospretende ascender sem pensar na resolução problemas históricos provocados por um sistema escravocrata?

“Ao gerar renda e melhorar a qualidade de vida dos descendentes de africanos no Brasil. A comunidade afro-brasileira nunca participou de nenhum ciclo econômico no Brasil como protagonistas, mas é chegada a hora disso acontecer agora com o ciclo da economia criativa e tecnologia.  Os problemas com a violência, o genocídio continuam ceifando muitas vidas e por meio da política devemos continuar lutando para isso acabar. O poder político deve vir ao lado do econômico”.

Vamos explorar nosso potencial criativo?

Deixemos de lado por momento a célebre frase de Nelson Rodrigues sobre o ‘complexo de vira-lata’ do brasileiro? Ora, será mesmo que tal afirmação segue fazendo sentido? Os motivos e dados citados nesta reportagem jogam por terra o discurso da meritocracia. Se é para insistir em termos batidos, optemos pela linha de que o Brasil não faz ideia de seu potencial.

Não está convencido? Bom, com pouco mais de um ano de atuação, a Vale do Dendê já recebeu uma demanda que superou e muito as expectativas do corpo diretivo. Falando ao Hypeness, Paulo Rogério destaca algumas empresas que conseguiu abarcar neste curto, mas frutífero período.

Paulo Rogério foi um dos poucos brasileiros no encontro com Barack Obama (foto: Ricardo Prado/Divulgação)

“Esperávamos 50 inscrições em nosso edital e recebemos 107. Além disso, a qualidade das empresas é muito acima da média…tem a Go Diaspora, uma empresa que está vendendo intercâmbios para  países africanos com um preço de uma TV LCD; A Abebe Cosméticos, uma empresa de cosmético que cria produtos com base na religiosidade afro-brasileira; A Afrobox, que está criando um totem para venda semi-virtual de moda negra para escalar em barbearias, salões e espaços de shows, a Interack, criando um sistema de car sharing para o Centro Histórico de Salvador, enfim, estamos bem felizes com o resultado”.

Tem mais, a cidade do Salvador sai ganhando nesta história. Falamos que além de bairros periféricos como Periperi e Castelo Branco, a Vale do Dendê também tem como proposta a revitalização do Centro Histórico. Entretanto partindo de um viés inclusivo e que valorize os moradores locais.

Um dos espaços mais significativos do mundo, o Pelô tem sua arquitetura tombada pelo Patrimônio Histórico, mas ainda sofre com atrações segmentadas. É comum ver suas ruas e vielas vazias em noites de meio de ano ou se deparar com relatos de comerciantes históricos fazendo o possível para se manterem ativos. Não tem jeito, a economia precisa girar, mas não apenas em função da presença do turista.

“O Centro Histórico, em especial o Pelourinho, é um lugar com muitas possibilidades não apenas para o turista, mas para o morador local. Ali você tem um museu a céu aberto sobre a história do Brasil (a primeira rua, o primeiro serviço de água encanada, a primeira faculdade etc), ou seja, é um lugar de uma importância incalculável para o Brasil. Além disso, seus casarões, coloridos, sua atmosfera descontraída e a musicalidade própria desse distrito de Salvador deve ser muito aproveitada para geração de negócios. Não seria absurdo pensar ali em um circuito de teatros com peças fixas, como na Broadway, em Nova Iorque. Só que em vez do Rei Leão, teríamos peças que falassem da Revolta dos Malês, da história da Capoeira, do surgimento do Samba..musicais que atraíssem locais e turistas. É claro, que tudo isso junto com o empoderamento dos moradores locais que são muito criativos e com a atração de mais pessoas para morar no entorno. Nenhum centro histórico se sustenta apenas com  comércio, há de de ser ter também moradia que mescle o perfil dos moradores. Nós da Vale do Dendê acreditamos muito que o Pelourinho pode voltar a ser o coração do Brasil no quesito criatividade e inovação”, salienta Paulo Rogério.

A criatividade em prol da conservação do patrimônio histórico (foto: Commons Media)

Claro, para que tudo isso seja possível, é necessário o envolvimento de patrocinadores. Infelizmente a realidade brasileira ainda concentra o poder econômico no Rio de Janeiro e em São Paulo. Existe uma visão teimosa de que o Nordeste tem ‘apenas’ belezas naturais para oferecer. Ledo engano, já que cidades como Recife, Fortaleza e a própria Salvador, são metrópoles, que com características distintas, abrigam mentes criativas. Multiplicidade de vozes.

“Por estarmos fora do eixo Rio-São Paulo, as coisas ficam mais difíceis, por conta da invisibilidade. Infelizmente os investidores ainda, por preconceito, olham pouco para o potencial do Nordeste que tem praias “caribenhas”, cultura de fácil internacionalização e um clima bem agradável todo o ano. Penso que precisamos furar mais essas bolhas. A maioria das pessoas sudestinas vem para Salvador apenas no carnaval, porém a cidade tem negócios o ano inteiro.  Porém, tivemos a sorte de encontrar parceiros que acreditaram em nosso projeto e estão tendo bons resultados, pois a Vale do Dendê vem crescendo a  cada dia. A pouco tempos fomos destaque na maior rádio pública dos Estados Unidos, a NPR, que alcança cerca de 40 milhões de norte-americanos por mês. Hoje contamos com o apoio da Fundação Itaú Social e da Fundação Alphaville como patrocinadores. Temos recebidos contatos de outras empresas interessadas em investir na Vale e também nas empresas que nós estamos acelerando”, encerra Paulo.

O surgimento deste Vale do Silício Baiano é mais uma evidência incontestável dos novos tempos. Parafraseando Mano Brown, você vai cruzar os braços e reclamar ou vai ser a revolução? Acredito em você!”A atuação cuidadosa de nomes como a Vale do Dendê e seus entusiastas reflete que sim, nossos passos vêm de longe, mas um novo futuro depende do presente.

“Creio que parte da nova geração de afro-brasileiros está bem posicionada para tirar proveito das novas competências do século XXI, que passam pela  ideia da economia colaborativa, do uso das tecnologias e da inovação. Qual o público que mais tem a necessidade de inovar todos os dias? Justamente o jovem negro ou morador de periferia. O “bater uma laje” é análogo ao crowdsourcing, as vaquinhas/rifas são formas de “crowdfunding” e não há nada mais “maker” do que carinha da esquina na favela que conserta computadores ou TV. Se nós apontarmos o caminho correto e empoderar esses jovens certamente eles podem criar coisas incríveis. No caso de Salvador, adicione-se a conversa o fato de termos uma cultura negra muito forte que fez com que a Bahia fosse conhecida no mundo todo. Qual a banda brasileira mais conhecida  no mundo? É justamente o Olodum, uma inovação criada por jovens negros nos anos 80”.

Se empolgou, então visite o site oficial da Vale do Dendê e faça parte da inovação. A revolução não será televisionada, caro Gil Scott-Heron.

-+=
Sair da versão mobile