Valeu Zumbi! – Por: Sueli Carneiro

Foto: Marcus Steinmayer

Sempre que penso em Zumbi dos Palmares, reafirma-se a minha confiança na história, na capacidade do tempo de rever e recontar a história, em aliança com os seres humanos sinceramente empenhados na busca da verdade.

Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

Me lembro das incontáveis vezes em que a palavra zumbi era usada na minha infância para assustar as crianças travessas. E é admirável como de lá para cá a palavra vem sendo resignificada. Tornou-se nome próprio, tendo por sobrenome um território, Palmares, símbolo da resistência dos negros à escravidão. O “morto-vivo” levado para o imaginário popular através das versões oficialescas sobre a escravidão dá lugar ao escravo rebelde e libertário que exige o seu lugar na história, e ao fazê-lo revela uma outra narrativa. É o primeiro herói popular do Brasil, encarnando, contra o mito da passividade do negro, a luta da dignidade humana contra toda forma de opressão. A cada novo 20 de novembro ele se espraia, amplia o seu território na consciência nacional, empurra para os subterrâneos da história seus algozes que foram travestidos de heróis. Adeus Domingos Jorge Velho. Já vai tarde!

Diz Edson Cardoso, militante negro aqui de Brasília, que a maturidade de um país se mede também pela sua capacidade de reapropriação de seu passado e que esse transbordamento crescente do 20 de novembro é sinal do avanço dessa transnegrescência, que pela justeza de propósitos que carrega faz com que Zumbi se torne cada vez mais herói de todos.

Nesse 20 de novembro, de novo desfilaram diante de nós as estatísticas das desigualdades raciais e também manifestam-se os diferentes artifícios para emperrar ou retardar a adoção das medidas corretivas, mesmo após o reconhecimento da Conferência Mundial contra o Racismo, ocorrida em Durban em setembro passado, da urgência de implementação de políticas públicas de combate ao racismo e promoção da igualdade para os afrodescendentes.

Inúmeros projetos de lei esperam pela vontade política dos deputados, e outros, já aprovados, defrontam-se com as clássicas artimanhas para a sua inviabilização.

É o caso do projeto de lei sancionado pelo governo do Rio de Janeiro que prevê a adoção de cotas para negros no nível universitário, sobre o qual instaurou-se a velha polêmica da impossibilidade de definir quem é negro. Outros “argumentos” conspiram também contra a política de cotas.

Um dos mais recorrentes é o de que as cotas reproduzem as injustiças que pretende corrigir por abdicar do mérito como critério de acesso aos níveis superiores de educação.

O princípio que orienta a adoção de políticas de ação afirmativa e um de seus instrumentos, as cotas, baseia-se num imperativo ético e moral de reconhecimento das desvantagens historicamente acumuladas pelos grupos discriminados em uma dada sociedade, que sustentam os privilégios de que desfrutam os grupos raciais dominantes e explicam as desigualdades de que padecem os dominados. Nesse sentido, as políticas compensatórias tem o claro objetivo de corrigir a bolha inflacionária em favor dos grupos racialmente dominantes no acesso ás oportunidades sociais, de modo a realizar o princípio de igualdade para o que impõe-se que esses grupos discriminados sejam objeto de discriminação positiva que os aproximem aos padrões sociais alcançados pelos grupos dominantes. Há ainda o reconhecimento de que o mérito, ainda que exista, na performance individual dos racialmente hegemônicos, está mediado pela exclusão intencional dos discriminados o que limita o alcance da proeza pela desigualdade de origem instituída nos termos da competição social.

Então, quando o mérito é invocado para barrar propostas de promoção de igualdade racial, omite-se, escamoteia-se, a construção social segundo a qual nascer branco consiste por si só num mérito, uma vantagem original, cujo prêmio é conduzir “naturalmente”, brancos, ao acesso privilegiado aos bens sociais. O que todos os indicadores sócio-econômicos desagregados por cor/raça confirmam.

No entanto, acima de todos esses argumentos, eleva-se a voz de quem tem como função a garantia da Constituição.

É a boa nova desse 20 de novembro trazida pelo ministro Marco Aurélio, presidente do Supremo Tribunal Federal em palestra no seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro”, realizado no Tribunal Superior do Trabalho sob a coordenação geral do ministro do TST, Carlos Alberto Reis de Paula.
A fala do ministro Marco Aurélio, indica que construir a igualdade requer em princípio reconhecer a desigualdade historicamente construída: “Temos o dever cívico de buscar tratamento
igualitário a todos os cidadãos, e isso diz respeito a dívidas históricas. O setor público deve, desde já, independentemente da vinda de qualquer diploma legal, dar à prestação de serviços uma outra conotação, lançando em editais a imposição em si de cotas, que visem contemplar as minorias”, alertando ainda que as chamadas minorias não dizem respeito à questão numérica, mas à questão de acesso às oportunidades.

Sobre a constitucionalidade dessas medidas, na avaliação do ministro Marco Aurélio, tais iniciativas não se chocam com o texto constitucional porque, em última análise, o procedimento tem como objetivo a continuidade da própria Constituição Federal.

Ao Legislativo o ministro endereça essa frase: “As normas proibitivas não são suficientes para afastar do nosso cenário a discriminação. Nós precisamos contar, e fica aqui o apelo ao Congresso Nacional, com normas integrativas”. A propósito, na próxima semana (26 e 27), a Câmara dos Deputados realizará o seminário “Construindo a Igualdade Racial” promovido pela Comissão destinada a apreciar o projeto de lei que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Mais uma oportunidade para avançarmos decisivamente nessa matéria.

O posicionamento do presidente do Supremo é um fato histórico em que o Poder, muitas vezes considerado, o mais refratário as mudanças sociais, conclama as demais instâncias do Estado a sair de sua inércia frente as desigualdades raciais afirmando: “Nós sabemos que o preceito (lei) pode ser dispositivo ou imperativo. E aqui (no Tribunal Superior do Trabalho) nós estamos em um tribunal que lida com preceitos imperativos, porque se percebeu a necessidade do Estado intervir para corrigir desigualdades.”

Então, em não havendo impedimento constitucional, e nenhuma outra instância a recorrer, cumpra-se! Só depende de vontade política. Para iniciarmos o retorno a Palmares, o nosso primeiro sonho de liberdade.

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