Vamos fazer política?

(Foto: Marcus Steinmayer)

O grande mestre se manifesta novamente e, como sempre, de forma lúcida, provocativa, convidando á reflexão. É Milton Santos, em entrevista á Folha de São Paulo de 08 de janeiro. Nela, ficamos sabendo que o medo do racismo nos fez perder um engenheiro, e paradoxalmente, nos deu, um dos mais importantes geógrafos do mundo, posto que sua família o aconselhou a desistir de estudar na Escola Politécnica por saber, que “os negros não eram bem recebidos na instituição.”  Ele transita por diferentes temas, em especial sobre os males da globalização sobretudo no aprofundamento da exclusão social. E, em sendo ele, um dos raros intelectuais negros reconhecidos nacional e internacionalmente, a inevitável pergunta sobre a questão racial lhe é posta, mais especificamente, sobre a possibilidade de ter no Brasil reações muito violentas da parte dos negros em relação á situação em que eles se encontram, á qual ele responde serenamente: “Está perto de acontecer, espero que aconteça.”

por Sueli Carneiro

Uma semana antes de Milton Santos, Luiz Felipe de Alencastro em artigo no Caderno Mais da Folha de São Paulo de 31 de dezembro último ao elencar os desafios que estão postos para o progresso do país conclui dessa maneira: “Há no entanto um problema que não aparece no fio do horizonte, mas que poderia muito bem surgir por aí um dia desses, para melhorar a situação de todos nós. Refiro-me á necessidade da emergência de um movimento negro, reivindicativo, estruturado, de escopo nacional, similar ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Situados majoritariamente nas camadas mais desfavorecidas da população, os negros polarizam todos os itens das dívida histórica e social do país. A afirmação da identidade negra, calcada na maioria cultural e na quase maioria demográfica formada pelos afro-brasileiros, poria em primeiro plano, com grande força política, todas as mazelas sociais e culturais do país. Nada indica que o surgimento de um movimento negro desse porte seja previsível no Brasil. Mas essa previsão precisa ser desmentida.”

Milton Santos e Alencastro me fazem lembrar também de outras opiniões emitidas não há muito tempo por algumas outras figuras públicas. Arnaldo Faria de Sá disse recentemente, sobre o ex-prefeito Celso Pitta: “Certamente o prefeito de São Paulo, negro, decente, honrado deve ter na sua alma algo de escravo. Só um escravo conseguiria suportar tanto.” Arnaldo Jabor, num seminário organizado pelo Ministério da Justiça em 1996 sobre políticas de ação afirmativa, disse algo mais ou menos assim, que os negros brasileiros eram muito bonzinhos e que por muito menos, os negros norte-americanos já teriam incendiado o país. No mesmo seminário, Contargo Calligaris, para quem, a abolição é uma obra ainda não realizada no Brasil, enfatizava que a “responsabilidade do movimento negro e da população negra – e entendo que ela é fundamental – é dupla: sem dúvida , realizar o fim da escravatura, mas também realizar, ou no mínimo contribuir a inventar, uma transição essencial para a sociedade brasileira em seu conjunto, uma mudança cultural (…) que não é nada menos do que a invenção de uma democracia no Brasil.”

Edson Cardoso em editorial do jornal Irohin aponta para a “canoa furada” em que embarcaram, segundo ele, amplos setores do Movimento Negro. ” Querem porque querem criar um momento único da história da Humanidade. Alterar condições de vida de um povo dominado e subalternizado há cinco séculos a partir de manifestações de boa consciência do grupo dominante (…) Sem sangue, sem guerrilha urbana nem pantera idem (referindo-se aos Panteras Negras),sem prisões e assassinatos, sem eliminação de lideranças não servis, sem aqueles conflitos em cidades incendiadas.”

Num outro seminário realizado pelo PNUD em1996, um alto representante do governo disse que o governo era obrigado a negociar com os setores capazes de colocar em risco a governabilidade do país. E o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso em entrevista a revista Veja disse que precisaria que demandássemos mais para ele pudesse fazer mais pela questão racial.

Ao que essas diferentes vozes nos convocam?

A mostrar a nossa capacidade política para pôr em risco a governabilidade do país em defesa de nossos interesses? A dar uma demonstração de insubordinação cuja memória remonta ás revoltas quilombolas? A mergulhar num banho de sangue, como um rito de passagem para a ressurreição? A negar o pessimismo nelas subjacente, em relação a nossa capacidade de fazer política? A nos mostrarmos dignos da herança de luta de Zumbi dos Palmares para nos tornarmos merecedores da implementação de políticas de combate ao racismo e de promoção da igualdade?

Seja lá o que for, parece haver uma exigência histórica colocada, muito superior, aos esforços que já vimos realizando, e á qual os Movimentos Negros não tem sido capazes de responder.

Pessoalmente acredito que, se é verdadeiro que a ausência de guerra não significa necessariamente existência de paz, essa pode ser conquistada sem aquela. Mas, em qualquer dos casos, jamais se prescindirá da organização política tal como claramente formulada por Alencastro ou implícita em Edson Cardoso e Milton Santos. E essa exigência histórica não pode mais ser postergada sob pena de inviabilizar a nossa credibilidade enquanto movimento social.

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