Vidas negras importam! Mas por que precisamos afirmar o óbvio?

FONTEPor Núncia Guimarães Escobar e Mariana Selister Gomes*, do Sul21
Pessoa segura um cartaz com os dizeres 'Black lives matter' ("vidas negras importam", em português) durante um protesto na sexta-feira (29) em Detroit, no Michigan, pela morte de George Floyd. (Foto: Seth Herald/AFP)

Quando um homem branco, a serviço do Estado, assassina brutalmente um homem negro, sob os olhos do mundo inteiro; quando, mais uma vez, incontáveis tiros da polícia terminam com a vida de uma pessoa negra em uma favela; não é mais possível silenciar as vozes que gritam, no Brasil e no mundo: Vidas Negras Importam!

Mas, por que é necessário afirmar que vidas negras importam, já que isso é óbvio? Porque, assustadoramente, não é tão óbvio para muitos brancos, nem para as estruturas racistas da nossa sociedade. A vida – e a morte – de pessoas negras é banalizada na sociedade ocidental, há mais de 500 anos. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, lembra-nos a artista brasileira Elza Soares.

Vidas negras são banalizadas quando um agente do Estado mata uma pessoa negra, sem que ela esteja apresentando nenhuma ameaça. A isso chamamos Genocídio da População Negra e Necropolítica – conceitos desenvolvidos por Abdias do Nascimento e Achille Mbembe, respectivamente.

Vidas negras são banalizadas quando alguém faz uma piada racista sobre a morte de pessoas negras ou quando alguém posa sorridente para uma foto em frente a um tronco de suplício em uma antiga Charqueada (algumas vezes, sem ter noção da gravidade do que está fazendo). A isso chamamos Violência Simbólica – conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu. Ou seja, também existe racismo, como pontua Beatriz Nascimento, em um emaranhado de sutilezas.

Vidas negras são banalizadas quando uma das primeiras vítimas da pandemia de Coronavírus no Brasil é uma mulher negra, pobre, empregada doméstica, que foi contaminada por sua patroa branca que tinha acabado de voltar da Itália. A isso chamamos Interseccionalidade de Raça, Classe e Gênero – conceito desenvolvido por Kimberlé Crenshaw e debate trazido à tona por Angela Davis e pelo Feminismo Negro.

Vidas negras são banalizadas quando um menino negro de 5 anos morre enquanto estava sob a supervisão da patroa branca de sua mãe, que não havia sido liberada do trabalho em meio a uma pandemia e teve que deixar seu filho com sua patroa enquanto precisou cuidar de cachorros. A isso chamamos “Deixar Morrer”, elemento central do Biopoder que estrutura a sociedade racista – conceito desenvolvido por Michel Foucault. É com profundo pesar, dor e revolta que incluímos mais esse caso devastador em nosso texto, mais uma criança negra que perde sua vida de forma vã, por ação ou omissão racista.

É inquestionável o que o cenário de pandemia escancara: a alarmante desigualdade social e racial, que dificulta ainda mais o acesso da população negra às questões de necessidade básica. Enquanto observamos os aumentos dos casos de Covid-19, a fome segue, o encarceramento em massa continua e os corpos pretos seguem sendo o alvo principal da violência do Estado e da negligência de empregadores brancos.

Cento e onze tiros disparados em um carro mata cinco jovens negros que estavam comemorando seu primeiro salário. Família negra é fuzilada com mais de oitenta tiros quando iam para um chá de bebê. Jovem negro sobrevivente, consegue fugir de massacre em escola, mas não recebe ajuda, precisa ir sozinho até o hospital com uma fratura exposta. Mulher negra baleada e morta em ação policial, tem corpo arrastado pela viatura da polícia por mais de trezentos metros.

Em 2020, muitos outros crimes vieram à tona, principalmente de crianças negras que tiveram suas vidas ceifadas pela brutalidade – cada vez mais exposta – da ascensão fascista.

A tudo isso, chamamos Racismo. Racismo que mata e deixa morrer o corpo e, quando permite viver, tenta matar a alma (ou a subjetividade), como alertou Frantz Fanon. Racismo que teve um início histórico, que é socialmente construído, que não é algo natural. A ideia de raça foi criada no período colonial, como demonstram Etienne Balibar e Immanuel Wallerstein, com uma série de legitimações simbólicas para justificar o injustificável: a escravização institucional de um povo, tornado mercadoria em um comércio nefasto que impulsionou o capitalismo. E esta colonialidade, como analisam Anibal Quijano, Maria Lugones e Stuart Hall, foi – e ainda é – uma marca profunda da nossa sociedade.

Concordamos com Sueli Carneiro quando ela afirma que a opressão racial é como uma síndrome respiratória aguda e grave, pois impede de respirar. Por isto, podemos e devemos desconstruir o racismo e tornar o óbvio, óbvio: Vidas Negras Importam!

O chamado de Lélia Gonzalez se faz cada vez mais necessário “enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo, negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil.”

Não existe antifascismo sem antirracismo e vice-versa.

O movimento está tomando as ruas do mundo todo, com os devidos cuidados para evitar a propagação da pandemia do coronavírus, torna-se cada vez mais evidente para todos o quanto é necessário estancar a pandemia do racismo. Como diria Malcom X: “Essa é a situação, nós precisamos preservar o direito de fazer o que for necessário para acabar com isso”.

(*) Núncia Guimarães Escobar é Mestranda em Ciências Sociais na UFSM, integrante do Coletivo Dandaras de Mulheres Negras e do Grupo GIDH/UFSM.

Mariana Selister Gomes é Professora Doutora do Departamento de Ciências Sociais, do PPGSOCIAIS e do PPGRI da UFSM e Coordenadora do Grupo GIDH/UFSM – Gênero, Interseccionalidade e Direitos Humanos. @programaGIDH

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