Artigo publicado na revista Carta Capital em 9 de janeiro de 2015
Por Atila Roque No Anistia
Cinco jovens foram assassinados em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense: um com 12 anos, um com 14, um com 15 e dois com 18. Um sexto jovem, com 12 anos, sobreviveu à tentativa de homicídio. Eram seis jovens, mas este crime não mereceu destaque em nenhum jornal, tampouco o pronunciamento de nenhuma autoridade.
O assassinato de Michael Brown, em agosto, ocorreu num subúrbio negro e pobre dos Estados Unidos. O mesmo acontece todos os dias no Brasil. Os jovens negros são os mais afetados pela violência e sabemos que uma parte destes homicídios é decorrente de intervenção policial. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil há uma herança de exclusão social e discriminação associada a juventude negra, que deve ser amplamente discutida e repudiada. A diferença é que no caso dos Estados Unidos, a morte desse jovem pela polícia provocou comoção e revolta, enquanto no Brasil raramente chega aos ouvidos da maioria da população. A sociedade convive com isso como se a morte violenta fosse o destino inevitável desses jovens. Não é.
Um dos desafios de grandes pensadores do século XX foi tentar entender como tantos alemães tornaram rotina lidar com a brutalidade da tragédia que ocorria por lá durante o holocausto. Hannah Arendt descreveu esse fenômeno como a banalização do mal. A ideia contemporânea de Direitos Humanos surge daí. A sociedade, o Estado, todos devemos nos sensibilizar, nos chocar, quando se violam direitos, quando se produzem tragédias. Alguns pensam: “O mundo é mesmo um lugar violento”. Não. Violento mesmo é o Brasil. Em 30 anos foram cerca de 1 milhão de pessoas assassinadas. O Brasil é responsável por 10% dos homicídios do mundo! Mata-se mais por aqui do que somados os principais conflitos armados do planeta. Achar isso banal é entregar-se à epidemia da indiferença.
São 56 mil homicídios no Brasil por ano. Desse total, 30 mil tinham idade entre 15 e 29 anos. É razoável lidar com esta naturalidade com o homicídio em massa de jovens? E por quê? Não nos enganemos. Os que morrem são em sua maioria negros, são pobres, são invisíveis. Não pensamos que, por trás do número de um milhão de mortos, há um milhão de mães, de familiares, de vidas roubadas, histórias interrompidas. Tornamos tudo isso invisível.
Por isso a Anistia Internacional lançou recentemente a campanha “Jovem Negro Vivo”, com o objetivo de romper com o silêncio e a indiferença da sociedade e do estado em relação a essas mortes. A morte violenta não pode ser aceita como destino de tantos jovens.
E a curva de crescimento continua ascendente. Nos últimos dez anos, por exemplo, a violência letal entre os jovens brancos caiu 32,3% e entre os jovens negros aumentou 32,4%. Ou seja, os homicídios de jovens negros são um dos principais pilares que sustentam o aumento das mortes. O outro pilar é a indiferença com a qual a sociedade e o estado tratam essas mortes, como se já tivessem passado a fazer parte da paisagem natural de nossas cidades.
Há muitas causas para o problema dos homicídios no Brasil. Uma delas consiste no sistema de Justiça e Segurança Pública, que tem sido historicamente marcado por uma distribuição seletiva da justiça e da impunidade. Um sistema altamente ineficaz no combate à criminalidade, profundamente marcado pela violência policial e por prisões conhecidas por suas “condições medievais”, em palavras de José Eduardo Cardozo, Ministro da Justiça.
Uma parte significativa da letalidade decorre de ações das polícias. Não é exagero dizer que as polícias no Brasil se encontram entre as que mais matam e morrem no mundo. Os dados divulgados recentemente pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 490 policiais tiveram mortes violentas no ano de 2013. Nos últimos 5 anos (2009-2011) a soma é de 1.770 policiais vitimados. Cerca de 75,3% foram mortos fora do horário de serviço. No mesmo período, as polícias brasileiras mataram em serviço – em nome do Estado, ou seja, de cada um de nós – 11.197 pessoas, o equivalente ao que as polícias dos EUA mataram em 30 anos. Esse quadro é o resultado do fracasso de uma política de segurança que estabeleceu a guerra como paradigma de ação, onde os inimigos são, em grande medida, os jovens das favelas e das periferias de nossas cidades, em grande maioria negros.
Outro motivo é a impunidade. O Brasil prende muito e mal. Menos de 8% dos homicídios no Brasil resultam em processos criminais. Há uma deficiência na investigação, com a existência de duas polícias (Civil e Militar) que pouco dialogam, além de outras questões como a falta de perícia, pouco uso de inteligência, falta de dados, planejamento e coordenação institucional e federativa. Somos o 4º país em população carcerária, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. As condições são péssimas: de alojamento, de alimentação, de justiça. Superlotação, torturas, condições de higiene precárias, revistas vexatórias em familiares – incluindo crianças – e toda a sorte de punições para quem cometeu delitos são comuns.
Ferguson e Brasil têm muito em comum, mas os americanos estão um passo à frente para a resolução do problema. Eles admitem que há um problema em matar jovens, negros, desarmados. E estão nas ruas dizendo isso de maneira contundente para que o mundo possa ouvir. No Brasil ainda prevalece o silêncio cúmplice.
Não se resolve o problema da segurança pública com um passe de mágica, porém o primeiro passo é perceber que a tragédia não é banal, não pode ser uma nota escondida no jornal. É preciso romper com uma espécie de pacto de silêncio que se estabeleceu em relação a essas mortes, com raras exceções. A indiferença da sociedade com tantas vidas perdidas é uma das nossas maiores vergonhas. Todas as mortes representam uma tragédia e perda irreversíveis. A sociedade tem um papel estratégico na pressão para que esta realidade mude. Não queremos entrar para História como outra geração que tolerou o extermínio.