Violência psicológica contra a mulher gera cinco registros por dia nas delegacias do Rio

Levantamento feito pelo GLOBO mostra que muitas vezes investigações não avançam pela dificuldade de comprovação dos danos

FONTEO Globo, por Carolina Heringer
Vítima de violência psicológica procurou a delegacia para denunciar ex-marido: mesmo amparadas pela lei desde 2021, mulheres encontram dificuldades para comprovar crimes - Foto: Guito Moreto

X., de 45 anos, havia perdido a identidade. Subjugada pelo marido, ela não tinha controle sobre a própria vida financeira e era impedida de fazer os programas que desejava. Mesmo assim, convivia sob o temor de vê-lo “explodir”, o que era frequente, insatisfeito com algum comportamento seu. Nem a separação interrompeu a rotina de abusos: ele seguiu tentando controlá-la, sem economizar atitudes e falas desagradáveis, sempre com o intuito de atingi-la.

— Eu adoeci. Comecei a ter diversas disfunções por causa de tudo que sofri com meu ex-marido, controle, manipulação, violência física contra meus filhos. Vivia o medo constante de uma bomba-relógio prestes a explodir. Eram momentos depressivos, de crise de pânico, taquicardia. Tudo consequência do estresse pós-traumático que desenvolvi por causa dessa relação — conta.

No fim de 2021, a mulher registrou queixa contra o ex em uma delegacia de polícia na Zona Sul do Rio, e o caso virou processo na Justiça: tornou-se uma das primeiras denúncias do Ministério Público do Rio pelo delito de violência psicológica contra a mulher, incluído no Código Penal, em julho daquele ano, pela Lei 14.188. Segundo levantamento do GLOBO, desde então, foram feitos 3.140 registros de violência psicológica em delegacias do estado. A média é de 165 por mês, cinco a cada dia.

A legislação define algumas condutas que configuram o crime de violência psicológica, como “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou controlar suas ações”, limitação do seu direito de ir e vir ou “qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”. Para X., há muitas vezes falta de compreensão do que envolve esse crime de gênero.

— É um eterno desgaste, manipulação através de palavras. O dano que isso causou à minha saúde é imenso. Mesmo depois da separação, ele queria ter a chave da minha casa, não me deixava falar com meus filhos enquanto estavam com ele — relembra X., cujo processo ainda não teve sentença.

Interpretação dúbia

Em vigor há um ano e sete meses, a lei tem gerado divergências em sua aplicação. A delegada titular da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Duque de Caxias, Fernanda Fernandes, pontua que muitas vezes é difícil comprovar a existência do crime de violência psicológica porque há dois entendimentos no meio jurídico: segundo um deles, o laudo médico não é necessário para comprovar o delito, mas outra corrente aponta a necessidade do documento.

Para a delegada, outras provas podem substituir a avaliação médica. Ela pondera que muitas vezes há dificuldade de acesso a especialistas que possam emitir o laudo:

— A lei não fala, expressamente, da necessidade do laudo. Há outras formas de comprovar esse dano causado (pelo autor). Às vezes, a vítima está tomando um remédio para dormir, antidepressivo ou ansiolítico, e é possível vincular a esse dano psicológico. Isso, combinado com os depoimentos de amigos e familiares atestando o estado dessa pessoa, além de outras provas na investigação.

Ainda segundo Fernanda Fernandes, a exigência de um laudo pode tornar a lei inócua.

— Quando o crime foi criado, não foi pensado que haveria essa dificuldade. Por mais que eu encaminhe as mulheres para atendimento (na rede pública), nem sempre há profissional disponível. E quantas sessões serão necessárias para que se emita um laudo desse tipo? Qual será a disponibilidade desse tipo de atendimento? — questiona a delegada.

No caso de X., diversos laudos — produzidos por profissionais particulares que a atenderam ao longo dos últimos anos — foram anexados à investigação e ao processo. O advogado dela, Alexandre Pavão Corrêa, considera que a documentação foi fundamental para a configuração do crime, com a denúncia do MP, comprovando os prejuízos causados pela conduta do ex-marido.

— Ela possui diversos sintomas fisiológicos em decorrência desse abuso e tudo isso foi documentado ao longo de anos, com laudos médicos. Nesses casos, é necessário demonstrar esse nexo de causalidade entre a conduta do autor do crime e esses danos — explica Pavão Corrêa.

Em nota, o Ministério Público do Estado do Rio diz que segue enunciado da Copevid (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), segundo o qual o laudo pericial não é necessário para se constatar a existência do crime de violência psicológica. O MP acrescenta, no entanto, que seus membros têm independência para formar livre convencimento nos processos.

A advogada Danielle Velasco, que passou a ser perseguida pelo pai de sua filha após a separação, também saiu da delegacia com registro de violência psicológica contra o ex-marido. Com o número de telefone bloqueado pela vítima, o homem usava o celular da filha para tentar contato com a ex: ligava dezenas de vezes, enviando mensagens xingando a advogada e fazendo até mesmo ameaças de morte. Em determinada ocasião, o acusado chegou a invadir a sede da OAB em Niterói atrás da advogada, que é presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica. Danielle afirma que os prejuízos causados à sua saúde física e mental, e também à da filha, foram inúmeros. O MP entendeu que não havia violência psicológica no caso dela, mas denunciou o ex-marido por outros crimes.

— Tive que sair do meu emprego e não conseguia sair de casa. Em uma ocasião, ele esmurrou meu portão. Eu vivia em pânico. Passei a andar com spray de pimenta na bolsa. Agora ele está preso — conta.

A advogada Marilha Boldt, que sofreu violência doméstica e passou a atuar em apoio a mulheres com histórias semelhantes à sua, faz duras críticas à legislação e observa que o crime abre margem para muitas interpretações. Mas também ressalta a importância da punição para esse tipo de conduta:

— É importante punir a violência psicológica para evitar um feminicídio. Esses abusos são progressivos. Mas, além disso, as consequências para a saúde da mulher são muito graves. Essa é a causa de uma série de problemas, como crises de ansiedade, transtornos alimentares, depressão e abuso de álcool e drogas.

‘Cicatrizes emocionais’

A autônoma Y. demorou a perceber a dimensão do que sofria durante o casamento. Brigas eram frequentes, em especial nas datas comemorativas, e o ex-marido a humilhava quando ela não queria ter relação sexual com ele. Para prendê-la em casa, o homem quebrava seus cartões bancários. Muitas vezes, ele permanecia mais de um mês sem falar com a então esposa.

Quando decidiu se separar, Y. passou a sofrer outro tipo de violência, a psicológica. Depois das agressões verbais pelo telefone, veio a surpresa: ela recebeu 11 processos movidos pelo ex, pelos mais diferentes motivos, como alienação parental e até cobrança por danos morais. Nas petições encaminhadas à Justiça, ele colocou o tipo de roupa íntima usada por ela, fotos dela nas quais a chamava de gorda, e afirmou que a ex não depilava as axilas, por isso tinha mau cheiro.

Y., que recebe suporte do SER ELA, grupo de apoio a vítimas de violência doméstica, desenvolveu durante o casamento problemas de ansiedade, que levaram a um quadro de obesidade e de distúrbio da tireoide. Depois da separação, ela emagreceu 26 quilos e teve queda de cabelo intensa. A autônoma diz que não sofreu violência física — apesar de ter levado dois beliscões do ex —, mas considera a violência psicológica ainda mais grave. No entanto, cansada de tantos problemas judiciais e por considerar a punição para o crime muito branda — de seis meses a dois anos de reclusão, pena que não resulta em prisão —, optou por não denunciá-lo.

— A violência psicológica pode ser muito pior do que tomar um tapa na cara. A violência que você sofre por anos, calada, deixa marcas que ficam na gente, e anos de terapia, de medicação, não vão tirar da sua mente, vêm os gatilhos. Não posso ouvir porta bater. Quando ele ficava furioso, batia porta. Ainda estou cheia de cicatrizes emocionais — diz Y.

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