‘Virou moda ser intolerante’, diz ativista contra o racismo no futebol

Documentar casos de racismo, homofobia, xenofobia e outras formas de discriminação no futebol é um trabalho que toma conta dos sete dias da semana para Piara Powar, 50, diretor executivo da Fare Network, principal ONG europeia de combate à discriminação nesse esporte.

Por Alex Sabino, do FOLHAPRESS

Piara Powar (APF)

A entidade está presente em 41 países do Velho Continente e começou expansão pela América Latina.

No ano passado, a Fare registrou 258 casos incidentes, iniciou campanhas de conscientização e pedindo punições aos infratores. A contagem continua em 2019 e o último incidente teve como protagonista o brasileiro Malcolm, recebido com faixa irônica pela torcida do Zenit (RUS) que dizia “obrigado, diretoria, por respeitar a tradição”, insinuando que a contratação de jogadores negros não se encaixaria na história do clube. O Zenit disse que a mensagem foi mal interpretada.

Convidado pela Fifa, Powar pretende montar banco de dados sobre o assunto durante as eliminatórias para o Mundial de 2022, assim a associação que comanda o esporte poderá (em teoria) tomar providências.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Powar afirma ter preocupações com os direitos humanos e discriminação a minorias no Qatar, sede da próxima Copa do Mundo. “A Fifa tem de atuar nisso”, disse.

Mas seu medo mais forte é a ascensão de governos populistas ao redor do mundo, algo que ele avalia ter deixado muitas pessoas à vontade para manifestar seus preconceitos nos estádios de futebol.

Confira a entrevista:

Folha – Como a Fare network trabalha?

Nós somos uma rede de organizações que atua para ajudar na inclusão de minorias no futebol e contra qualquer tipo de discriminação. A maioria dos nossos membros está na Europa, mas temos pessoas agora também na América Latina.

– É uma tarefa de tamanho considerável no cenário atual em que aparecem cada vez casos de racismo, homofobia e xenofobia no futebol.

Na Europa tem sido difícil por causa da ascensão do populismo. Os imigrantes, por exemplo, são alvos para políticos populistas. Há os governos da Itália, Hungria, Polônia… Hoje há mais visibilidade para esses casos e a visibilidade pode ser uma força positiva ou negativa. Nós tentamos usar de maneira positiva, para mostrar o problema e buscar soluções.

– Mas o problema hoje é maior do que no passado ou nós apenas percebemos agora que ele existe?

É pior do que há 5 ou 6 anos e fica a cada dia mais sério. Claro que hoje temos mais percepção do que acontece, mas é algo ligado aos problemas políticos. O medo de quem vem de fora, por exemplo. Os políticos ampliam esse medo e isso leva a um processo de amplificação dos problemas em um espaço público como é o estádio de futebol. Está na moda hoje em dia ser intolerante ou não aceitar o diferente.

– As redes sociais aumentam isso?

Elas têm um papel social importante na vida de muitos torcedores. São lugares em que as coisas não são policiadas. Você pode usar termos racistas nessas redes de um jeito que jamais faria na rua ou no estádio porque seria preso. Especialmente em momentos de crise, aumenta a possibilidade de problemas.

– A Fare network trabalha com a Uefa e a Fifa?

Temos trabalhos com a Uefa. Organizamos times de refugiados. Temos contato com a Fifa desde 2015. Desenvolvemos um trabalho de observação e expertise na América Latina. Nas próximas eliminatórias para a Copa do Mundo teremos um sistema para monitorar casos de discriminação, montar um arquivo e apresentar reclamações à Fifa para que providências sejam tomadas.

– No caso da Fifa e de discriminação no futebol, a Copa do Mundo no Qatar é uma preocupação?

Sim. Há grandes problemas com força de trabalho e discriminação no Qatar. Não há leis de trabalho justas para imigrantes, da mesma forma que em outros países, como Índia, Bangladesh e Paquistão. Os contratos são inseguros e o estrangeiro é um cidadão de segunda classe. No Qatar, o ato homossexual é ilegal e você pode ser preso por três meses mesmo se estiver em seu espaço privado.  A Fifa tem de atuar nisso porque a Copa do Mundo deveria ser uma celebração da humanidade.

– As autoridades do futebol estão levando os casos de racismo a sério?

Vemos muitas associações nacionais que não estão encarando o assunto com seriedade. Creio que a Fifa tem melhorado neste assunto. A Uefa tem como punição mínima o fechamento do estádio. Mas as autoridades às vezes parecem mais preocupadas em punir os jogadores por criticarem árbitros do que clubes por atos de discriminação cometidos por torcedores.

Veja como exemplo a Itália. O país atravessa uma crise econômica, convive com imigração africana, há conflitos e os políticos italianos têm discurso anti-imigração. Entendemos o dilema porque nenhuma associação nacional quer ir contra o seu governo. Mas a resposta deles para os casos de racismo e xenofobia têm sido muito ruim.

– Mas não há países em estado de negação e que acreditam não ter nenhum problema com racismo, apesar dos casos documentados? Como Ucrânia e Rússia, por exemplo?

Sim, existem. Há países monoculturais que não acreditam ter qualquer problema de discriminação. Existem países com ideias extremas, como Polônia, Ucrânia, Bulgária. A Rússia tem evoluído neste quesito, apesar de tudo. Antes da Copa do Mundo poderíamos criticá-los bastante, mas eles tiveram o foco em entender o problema.

– Há uma polêmica a respeito do direito que o time tem de abandonar a partida de futebol se um jogador for vítima de racismo. O que o senhor pensa a respeito disso?

Nós sabemos o pensamento dos jogadores. Eles são treinados desde cedo a perseverar e não desistir. Sair de campo vai contra a natureza deles. Quando ele pensa em sair é porque a situação é séria. Ele tem de tomar o caso em suas próprias mãos e alertar as pessoas. O jogador tem o direito de se sentir enojado com isso. Ninguém pode passar por nós na rua e nos ofender racialmente. Os jogadores têm de aceitar isso? Não creio.

– Em alguns estádios brasileiros, torcidas adotaram o costume de gritar “bicha” quando o goleiro bate um tiro de meta.

A Fare network foi alertada a respeito disso? É algo que surgiu no México, mas com outras palavras, não? Lá o grito é de “puto”. Temos discussões com ONGs brasileiras porque isso se tornou comum no país a partir da Copa do Mundo de 2014. Há pessoas ignorantes que acham ser uma boa maneira de desconcentrar o goleiro. Há os que sabem se tratar de homofobia mas vão continuar fazendo mesmo assim. No México é algo tão impregnado que pessoas têm dificuldade de entender o motivo da proibição. As autoridades pedem para que não digam mais essa palavra, mas não explicam a razão.

Alguns lugares precisam de um debate público sobre esse assunto e talvez o Brasil seja um deles. O problema é que não somos francos o suficiente. Dizemos apenas para não fazer aquilo porque o clube será multado. Tem de ir mais fundo do que isso e explicar exatamente o que está acontecendo.

– No passado, o mesmo problema aconteceu em jogos das eliminatórias sul-americanas.

Sim, sabemos que deverá continuar acontecendo nas eliminatórias. Fomos informados que a Fifa vai tomar ações sérias e haverá sanções.

O brasileiro Malcom durante treino treino pelo Zenit, em São Petersburgo Vyacheslav Evdokimov/Zenit O brasileiro Malcom durante treino treino pelo Zenit, em São Petersburgo

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