Vítima de abuso, Joanna Maranhão descarta propostas de Bolsonaro contra pedofilia

Hoje, Joanna trabalha em Recife, na Secretaria de Turismo, Esportes e Lazer (Foto: DANIEL TAVARES/PCR)

A atleta e ativista é a maior recordista brasileira da história da natação. Em debate promovido pelo Sesc em São Paulo, ela falou sobre seu caminho e as dificuldades das mulheres no esporte

Por Gabriel Valery, da RBA 

Hoje, Joanna trabalha em Recife, na Secretaria de Turismo, Esportes e Lazer (Foto: DANIEL TAVARES/PCR)

Vítima de abusos sexuais na infância, a nadadora Joanna Maranhão não acredita que propostas do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sejam eficazes para combater os crimes de pedofilia. “Não acredito em castração química ou pena de morte. Já quis muito mal desse homem, mas era um veneno que só eu bebia”, disse sobre o seu agressor em um bate-papo no Sesc Pinheiros, na zona Oeste de São Paulo.

A ex-atleta, ativista e profissional do ramo do esporte, esteve ontem (17) ao lado da professora Silvana Gollner, pós doutora na área de educação física. Na pauta, a importância de políticas públicas voltadas para as mulheres no esporte, além de uma franca conversa sobre abuso, assédio e feminismo.

Quem faz uma pesquisa rápida sobre sua carreira, logo encontra seus resultados. Maior recordista brasileira da história da natação, atleta que mais competiu em piscinas olímpicas pelo país, oito medalhas em jogos pan-americanos, um quinto lugar nos 400 metros medley nas Olimpíadas de Atenas de 2004, com apenas 17 anos. “Comecei a nadar muito cedo, com três anos, então, não foi por vontade ou paixão. Eu queria ver até onde poderia chegar, isso me movia no esporte e na vida”, revelou.

O temporal que caiu sobre São Paulo nas horas que antecederam o evento atrasou, mas não impediu a chegada das convidadas. Joanna trabalha em Recife como gerente de rendimentos/projetos especiais na Secretaria de Turismo, Esportes e Lazer da capital pernambucana e também faz parte do Conselho de Ética da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), além de tocar projetos sociais. Seu caminho foi longo e sua história é de superação. No ano passado, Joanna tentou ter o primeiro filho, mas perdeu. Agora, comemora com discrição início de uma nova tentativa.

Sua busca por resultados teve relação com uma história lamentável, que acabou por nortear o debate sobre mulheres e esportes. Em 2008, Joanna revelou ter sido vítima de abuso, foi estuprada por um treinador ainda na infância. Ela contou que tudo começou com o estabelecimento de uma relação de dependência. “Em 1995 comecei a treinar com um cara que dizia que eu tinha muito talento. Ele começou a fazer com que me sentisse especial, ele me dava mais treino do que os outros. Acabava o treino e todo mundo saia e eu ficava. Essa relação de dependência foi sendo criada durante um ano. Conquistou a confiança dos meus pais, fiquei amiga dos filhos dele.”

O relato evidencia o fato de que grande parte dos abusos acontecem no ambiente doméstico, comum. “Até que um dia, no segundo semestre, fui para a escada e ele colocou a mão dentro do meu maiô. Pensei que aquilo era diferente, que nunca tinha tido aquilo. Ele ficou me bolinando e dizia que já ia acabar. Aquilo me causava dor, estranheza, mas não sabia o que era (…) Um dia, ao invés de voltar de ônibus para minha casa, ele disse que precisava pegar algo na casa dele. Eu fiquei com medo porque pensei que poderia dar problema. Não deu outra. Sozinha, ele me despiu e fez tudo menos a penetração”, completou Joanna.

Mulher e política

Quando trouxe à tona, o crime já havia prescrito, o que motivou a edição da Lei 12.650, batizada de Lei Joanna Maranhão, que aumenta o prazo de prescrição para crimes de pedofilia. Até então, o prazo era contado a partir da data do crime, agora, a prescrição começa a correr a partir da data em que a vítima fizer 18 anos.

O abuso fez Joanna enfrentar traumas psicológicos e hoje declara que vive bem, apesar de sempre tomar cuidado com gatilhos que podem desencadear processos depressivos. “Ainda não perdoei, mas hoje consigo viver bem com minha feminilidade e sexualidade. Muitas pessoas falam que eu desabrochei eu digo que não. Estou mais liberta, vocês que estão condicionando à proximidade de beleza padrão, mas beleza é plural.”

A pluralidade dos sentidos dos gêneros se encaixa na questão das políticas públicas. A professora Silvana trouxe ao debate os aspectos necessários para enfrentar problemas, que passam da inclusão das mulheres no esporte, manutenção, até a segurança, evidenciado pela história de Joanna. “Segurança não é só assédio e abuso, mas que tenham acesso de forma igualitária às políticas públicas. No Brasil, as políticas públicas, em grande parte, estão voltadas para o futebol e atendem aos garotos. 30% das vagas das políticas públicas apenas são ocupadas por mulheres, por isso é importante falar sobre questões de gênero”, defendeu.

“Não é homens contra mulheres, e sim equidade e direito de usufruto. Podemos pensar também em classe social, raça e etnia. Uma sociedade que preza pela equidade vai em busca disso”, completou.

Para atingir a equidade, aspectos culturais precisam ser repensados, de acordo com a professora. “Acontece que, desde que nasce a criança, ela já é destinada a práticas específicas. Meninos trazem destreza maior não por genética. Desde o nascimento já existe diferenciação no tratamento motor. Meninas são mais circunscritas ao ambiente privado e meninos vão para a rua. Meninas tem que se cuidar mais, sentar como menina, não pode subir em árvore, não pode jogar futebol, a bola vai machucar o seio, o aparelho reprodutor, não vai poder ter filho. Essas besteiras que ouvimos até hoje.”

Silvana lembrou que as mulheres chegaram a ser privadas de práticas esportivas no país. “É interessante pensar na diferenciação que tem duas grandes vertentes, a partir de um contexto histórico e outro contemporâneo. Por quase 40 anos, algumas modalidades foram proibidas para as mulheres. Futebol, modalidades que diziam que não era para o corpo da mulher. Esse discurso é cultura, não assentado na ideologia. Corridas de longa distância, lutas, futebol, polo aquático. As mulheres eram presas se participassem.”

Ao alegar que o normal é a pluralidade, Silvana lamenta retrocessos no debate civilizatório, como o representado pelo discurso da ministra dos Direitos Humanos do presidente Jair Bolsonaro (PSL), Damares Alves. “Agora vemos discurso de que homem tem que ser azul e menina rosa. É um retrocesso na nossa cultura e temos que falar sobre isso, sob pena de mais uma vez discriminarmos e colocarmos como subalternos pessoas com culturas construídas.”

O temor é retroceder na questão das políticas públicas, que passa pela discussão de pontos cruciais, como aponta a especialista. “Por um lado, temos a não aceitação do diferente e, por outro, é temos o medo do abuso (…) Então, precisamos pensar na segurança. Uma menina não vai correr a noite sozinha no Ibirapuera porque sabe que pode ser morta. Isso impede a adesão de mulheres às práticas esportivas. Não porque não gosta ou não tem vontade, não é isso. Os condicionantes não são abordados e trabalhados”, disse, ao lembrar da cultura do estupro e dos grandes índices de feminicídio registrados no Brasil.

“Em tempo de demonização de ideologia de gênero, que isso quer desconstruir tudo, ao contrário, precisamos construir uma sociedade igualitária, onde a mulher não tenha medo de correr no Ibirapuera por medo de morrer. Uma mulher que consegue falar e politizar esse tema representa uma série de mulheres. Joanna é uma heroína dentro e fora da piscina, porque as políticas públicas não querem olhar para esse vespeiro”, completou.

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