Vítima de intolerância religiosa, Hekler quer abrir terreiro de candomblé

FONTEPor Isabela Alves Edição: Kátia Mello
Candomblecista, Hekler sonha em abrir um espaço religioso para ajudar pessoas da Cidade Tiradentes

Hekler Patrícia dos Santos, de 45 anos, tem um barracão na Cidade Tiradentes, zona sul de São Paulo, e gostaria de transformá-lo em um terreiro de candomblé. Mas Hekler se encontra impossibilitada de fazer isso por conta da intolerância religiosa da vizinhança do bairro.   

Durante a pandemia, com o marido desempregado, ela procurou diversas alternativas para obter uma renda extra, como vender marmitas de porta em porta ao lado das filhas, mas deparou-se com a intolerância em relação às matrizes africanas, pois é ela candomblecista.  

“O meu projeto fica em uma região cercada de pessoas evangélicas. Tudo o que eu tentei montar lá, os vizinhos diziam que ali era um centro de macumba, então eu não conseguia trazer as pessoas. Eles também já invadiram, quebraram minhas coisas e furtaram o local. Fiquei com medo de que eles façam mal a alguém”, conta entristecida. 

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 assegura a igualdade religiosa e reforça a laicidade do Estado brasileiro. Além disso, a intolerância religiosa é considerada crime no País, segundo a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, que determina crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões. De acordo com levantamento de 2019 do serviço Dique 100 do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a intolerância religiosa atinge, principalmente, as pessoas que são praticantes de crenças de matriz africana, como a umbanda e o candomblé (61%), enquanto que católicos apenas 12%. A mesma pesquisa aponta que as denúncias cresceram em 56%, em 2019. Os casos só vêm se agravando nos últimos anos e os números podem ser ainda maiores, uma vez que grande parte das vítimas não costuma fazer a denúncia formalmente.

Uma situação que a marcou quando estava no barracão foi um homem desconhecido que bateu palma na casa do seu vizinho evangélico. O pastor começou a orar e logo depois o jovem tocou a campainha de Hekler.  “O pastor disse que o que alimenta o corpo e alma é Jesus. Ele colocou a mão na minha cabeça e começou a sacudir e eu estou passando mal, porque faz dois dias que eu estou sem comer”, disse o homem. Comovida com a situação, ela o serviu uma refeição completa e disse que as portas sempre estariam abertas para ele: “A gente precisa de Jesus, mas o corpo também precisa de alimento”, disse. 

Atenta à condição social de sua comunidade, Hekler não quer apenas criar um centro religioso.  No mesmo local, a cabelereira quer montar uma associação para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade. “Tenho fé que vou conseguir colocar o projeto em andamento”, diz.  

Hekler conta que ela e sua família tiveram muitas dificuldades financeiras durante a pandemia. “Os preços das coisas aumentaram por demais e tínhamos pouco dinheiro. Acabamos acumulando dívidas”, diz. No entanto, também foi durante a crise sanitária que as vendas do seu negócio de cosméticos naturais deram uma grande guinada. A marca que ela tem fabrica produtos para cabelos e pele para homens e mulheres. Formada como cabeleireira há sete anos, ela almeja promover cursos de cabeleireiro, manicure e cosmetologia. 

Além das dificuldades financeiras, Hekler ainda se deparou com a difícil situação de saúde de sua filha menor. Ela é mãe de quatro meninas: Ingryd, de 25 anos, Yanka, de 23, Emilly, de 17, e Jhullya Carolline, de 14. A caçula foi diagnosticada com meningite e quase chegou a óbito, em 2020. 

Por ter contraído a doença no auge da pandemia e no momento do lockdown, foram grandes as dificuldades para encontrar atendimento médico, mesmo procurando ajuda pelo convênio particular. A menina sentia uma dor de cabeça intensa e, ao chegar ao hospital pela manhã, teve 42 graus de febre e estava a ponto de convulsionar. Jhullya foi encaminhada para a internação às pressas.  

“O que sua filha tem é muito grave. Se apega com as coisas que você acredita. Ela já é uma heroína por ainda estar viva, pois muitas pessoas nessa gravidade não conseguem escapar”, alertou o médico após o diagnóstico.  

Em 2020, o Brasil atingiu os índices mais baixos de incidência da meningite meningocócica das últimas duas décadas, 357 casos notificados. Com o distanciamento social e uso de máscaras para controlar a pandemia, era previsto que doenças de transmissão respiratória como a meningite seriam evitadas. No entanto, a baixa adesão à vacina nos últimos anos preocupa os profissionais de saúde. A cobertura vacinal, que em 2011 foi de 105%, caiu para 54,4% em 2019, segundo o relatório do DataSUS, produzido pelo Ministério da Saúde. 

“Quando é falta de dinheiro ou comida reduzida, a gente lamenta, mas ainda temos saúde. Agora, quando uma doença letal atinge um dos teus, isso nos abala por inteiro”, reflete.  

Felizmente, sua filha se recuperou da meningite, mas três colegas próximos morreram por causa da doença durante a pandemia.  

Enfrentar a doença da filha caçula foi a parte mais difícil da pandemia para Hekler

Trajetória de vida 

Nascida em São Paulo, Hekler se mudou para Cohab, na Cidade Tiradentes, aos seis anos de idade. Parte da sua criação foi dada pela avó paterna, que a introduziu ao candomblé, e outra parte veio da mãe. “Superação é uma palavra fantástica. Ela me acompanha desde os meus oito anos de idade. Sempre tive que me reinventar e a religião me trouxe muita maturidade”, lembra. 

A mãe vivia em um relacionamento abusivo com seu pai. Por muitas vezes, Hekler ainda criança a impediu de se matar. “O meu pai era tão possessivo que quando a minha mãe ia visitar as irmãs e chegava uma visita, ele a trancava no banheiro e a deixava lá até os homens irem embora. Todo mundo [da família] sabia dos maus-tratos, mas não faziam nada”.  

Hekler lembra que a mãe não tinha liberdade nem para estender uma roupa no varal, porque corria o risco do marido suspeitar que ela estava olhando para algum vizinho.  

Quando queria se ver livre da esposa, ele a levava ao hospital psiquiátrico Casa de Saúde Nossa Senhora de Fátima e pedia pela sua internação: “Ela tentou se matar e matar aos filhos. Não posso voltar com ela pra casa”, ele dizia.  

Diante de tantas atribulações, sua mãe acabou perdendo a sanidade mental e foi aposentada pela Prefeitura como alienada mental. Posteriormente, ela também teve problemas com o alcoolismo e Hekler era a responsável por dar os remédios. 

“Uma vez minha mãe estava no parapeito da janela para se jogar. Ela não aguentava mais e eu a fiz descer. Eu sou de uma época em que a mulher tinha que ficar casada até morrer. Desse no que desse, a mulher era criada para ser submissa”, conta.  

Sua emancipação ocorreu anos depois quando as irmãs que vivem na Suíça a convidaram para se mudar de país. Apesar de ter tido muitas dificuldades em se adaptar ao novo lugar e aprender o idioma, hoje ela vive tranquila e feliz.  

Ao acompanhar de perto os sofrimentos da mãe, Hekler se tornou resiliente e aprendeu a manter a serenidade diante de grandes problemas. Para o futuro, ela quer inspirar outras mulheres a serem independentes. “Eu pretendo continuar a ajudar as pessoas e gerar empregos para as nossas mulheres, independentemente de raça, cor, gênero e grau”, diz.  

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